Poemas - Blog A CRÍTICA
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"Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados." (Millôr Fernandes)

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Poemas

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Rudolf Epp (1834 – 1910)

 Há metafísica bastante em não pensar em nada



Há metafísica bastante em não pensar em nada.

 

O que penso eu do Mundo?

Sei lá o que penso do Mundo!

Se eu adoecesse pensaria nisso.

 

Que ideia tenho eu das coisas?

Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?

Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma

E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos

E não pensar. É correr as cortinas

Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

 

O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!

O único mistério é haver quem pense no mistério.

Quem está ao sol e fecha os olhos,

Começa a não saber o que é o Sol

E a pensar muitas coisas cheias de calor.

Mas abre os olhos e vê o Sol,

E já não pode pensar em nada,

Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos

De todos os filósofos e de todos os poetas.

A luz do Sol não sabe o que faz

E por isso não erra e é comum e boa.

 

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores

A de serem verdes e copadas e de terem ramos

E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,

A nós, que não sabemos dar por elas.

Mas que melhor metafísica que a delas,

Que é a de não saber para que vivem

Nem saber que o não sabem?

 

«Constituição íntima das coisas»...

«Sentido íntimo do Universo»...

Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.

É incrível que se possa pensar em coisas dessas.

É como pensar em razões e fins

Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores

Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

 

Pensar no sentido íntimo das coisas

É acrescentado, como pensar na saúde

Ou levar um copo à água das fontes.

 

O único sentido íntimo das coisas

É elas não terem sentido íntimo nenhum.

 

Não acredito em Deus porque nunca o vi.

Se ele quisesse que eu acreditasse nele,

Sem dúvida que viria falar comigo

E entraria pela minha porta dentro

Dizendo-me, Aqui estou!

 

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos

De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,

Não compreende quem fala delas

Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

 

Mas se Deus é as flores e as árvores

E os montes e sol e o luar,

Então acredito nele,

Então acredito nele a toda a hora,

E a minha vida é toda uma oração e uma missa,

E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

 

Mas se Deus é as árvores e as flores

E os montes e o luar e o sol,

Para que lhe chamo eu Deus?

Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;

Porque, se ele se fez, para eu o ver,

Sol e luar e flores e árvores e montes,

Se ele me aparece como sendo árvores e montes

E luar e sol e flores,

É que ele quer que eu o conheça

Como árvores e montes e flores e luar e sol.

 

E por isso eu obedeço-lhe,

(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),

Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,

Como quem abre os olhos e vê,

E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,

E amo-o sem pensar nele,

E penso-o vendo e ouvindo,

E ando com ele a toda a hora.


(Fernando Pessoa)


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François Pascal Simon, Baron Gérard - Psique recebendo o primeiro beijo de Cupido, 1798


CANTIGA PARA NÃO MORRER


"Quando você for se embora,

moça branca como a neve,

me leve.


Se acaso você não possa

me carregar pela mão,

menina branca de neve,

me leve no coração.


Se no coração não possa

por acaso me levar,

moça de sonho e de neve,

me leve no seu lembrar.


E se aí também não possa

por tanta coisa que leve

já viva em seu pensamento,

menina branca de neve,

me leve no esquecimento."


Ferreira Gullar

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A um livro

 
No silêncio de cinzas do meu Ser
Agita-se uma sombra de cipreste,
Sombra roubada ao livro que ando a ler,
A esse livro de mágoas que me deste!

Estranho livro aquele que escreveste,
Artista da saudade e do sofrer!
Estranho livro aquele em que puseste
Tudo o que eu sinto, sem poder dizer!

Leio-o e folheio, assim, toda a minh’alma.
O livro que me deste é meu e salma
As orações que choro e rio e canto!...

Poeta igual a mim, ai quem me dera
Dizer o que tu dizes!... Quem soubera
Velar a minha Dor desse teu manto!...

Florbela Espanca

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Hemen Mazumdar (1894–1948)


Às Vezes Entre a Tormenta.



Às vezes entre a tormenta,
Quando já umedeceu,
Raia uma nesga no céu,
Com que a alma se alimenta.
E às vezes entre o torpor
Que não é tormenta da alma,
Raia uma espécie de calma
Que não conhece langor.
E, quer num quer noutro caso
Como o mal feito está feito,
Restam os versos que deito,
Vinho no copo do acaso.
Porque verdadeiramente
Sentir é tão complicado
Que só andando enganado
É que se crê que se sente.
Sofremos? Os versos pecam.
Mentimos? Os versos falham.
E tudo é chuvas que orvalham
Folhas caídas que secam.

Fernando Pessoa

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Agathe Röstel

Vaidade


"Sonho que sou a Poetisa eleita,

Aquela que diz tudo e tudo sabe,

Que tem a inspiração pura e perfeita,

Que reúne num verso a imensidade!


Sonho que um verso meu tem claridade

Para encher todo o mundo! E que deleita

Mesmo aqueles que morrem de saudade!

Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!


Sonho que sou Alguém cá neste mundo...

Aquela de saber vasto e profundo,

Aos pés de quem a terra anda curvada!


E quando mais no céu eu vou sonhando,

E quando mais no alto ando voando,

Acordo do meu sonho..


E não sou nada!.."


Florbela Espanca

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Barcos em Mar Tormentoso (van de Velde)


VIAGEM


Aparelhei o barco da ilusão

E reforcei a fé de marinheiro.

Era longe o meu sonho, e traiçoeiro

O mar…

(Só nos é concedida

Esta vida

Que temos;

E é nela que é preciso

Procurar

O velho paraíso

Que perdemos).

Prestes, larguei a vela

E disse adeus ao cais, à paz tolhida.

Desmedida,

A revolta imensidão

Transforma dia a dia a embarcação

Numa errante e alada sepultura…

Mas corto as ondas sem desanimar,

Em qualquer aventura,

O que importa é partir, não é chegar.


Miguel Torga, in 'Câmara Ardente'

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Jules Lefebvre - Safo


LETREIRO


Porque não sei mentir,
Não vos engano:
Nasci subversivo.
A começar por mim — meu principal motivo
De insatisfação –,
Diante de qualquer adoração,
Ajuízo.
Não sei me conformar.
E saio, antes de entrar,
De cada paraíso.

Miguel Torga

773


Tête de Femme  ( Jacqueline ) 1962 - Pablo Picasso


Os Dois Horizontes


Dois horizontes fecham nossa vida:
Um horizonte, — a saudade 
Do que não há de voltar; 
Outro horizonte, — a esperança 
Dos tempos que hão de chegar; 
No presente, — sempre escuro,— 
Vive a alma ambiciosa 
Na ilusão voluptuosa 
Do passado e do futuro.
Os doces brincos da infância 
Sob as asas maternais, 
O vôo das andorinhas, 
A onda viva e os rosais; 
O gozo do amor, sonhado 
Num olhar profundo e ardente, 
Tal é na hora presente 
O horizonte do passado.
Ou ambição de grandeza 
Que no espírito calou, 
Desejo de amor sincero 
Que o coração não gozou; 
Ou um viver calmo e puro 
À alma convalescente, 
Tal é na hora presente 
O horizonte do futuro.
No breve correr dos dias 
Sob o azul do céu, — tais são 
Limites no mar da vida: 
Saudade ou aspiração; 
Ao nosso espírito ardente, 
Na avidez do bem sonhado, 
Nunca o presente é passado, 
Nunca o futuro é presente.
Que cismas, homem? – Perdido 
No mar das recordações, 
Escuto um eco sentido 
Das passadas ilusões. 
Que buscas, homem? – Procuro, 
Através da imensidade, 
Ler a doce realidade 
Das ilusões do futuro.
Dois horizontes fecham nossa vida.


Machado de Assis

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Pierre-Auguste Renoir - A Garota do Falcão (1880)

Idades da vida


Oh, urbes do Eufrates!
Oh, ruas de Palmira!
Oh, bosques de colunas sobre o pranto deserto!
O que sóis?
De vossas coroas,
ao haver traspassado os limites
de aqueles que respiram,
pelo fumo dos deuses
e de seu fogo fostes despojadas;
porém sentado agora baixo nuvens (cada
qual repousando em sua própria quietude)
baixo carvalhos hospitaleiros, na sombra onde pastam os corços,
estranhas e mortas se me fazem
as almas venturosas.


Hölderlin

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Volta a São Luís


"Mal cheguei e já te ouvi
gritar pra mim: bem te vi!
E a brisa é festa nas folhas
Ah, que saudade de mim!
O tempo eterno é presente
no teu canto, bem te vi
(vindo do fundo da vida
como no passado ouvi)
E logo os outros repetem:
bem te vi, te vi, te vi
Como outrora, como agora,
como no passado ouvi
(vindo do fundo da vida)
Meu coração diz pra si:
as aves que lá gorjeiam
não gorjeiam como aqui."

Ferreira Gullar
São Luis, abril, 1996
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A Noite Estrelada de Van Gogh


No Ameno Azul


Friedrich Hölderlin
"Cheio de mérito, mas poeticamente, vive o homem sobre esta Terra"
No ameno azul floresce, com o seu telhado de metal, o campanário. À sua volta paira a gritaria das andorinhas, rodeia-o o azul mais comovente. O sol ergue-se, alto, sobre ele, e dá cor à chapa metálica, mas é no seu cimo que, ao vento, suavemente, canta o catavento. Quando alguém então desce para o patamar do sino, por aqueles degraus, há uma vida silenciosa, pois quando a sua figura está assim tão isolada, sobressai a plasticidade do homem. As janelas em que os sinos tocam são como arcos de beleza. Pois os arcos ainda imitam a Natureza, são semelhantes às árvores da floresta. E o que é puro também é belo. No interior, da diversidade surge um espírito sério. E as imagens são tão simples, tão santas, que muitas vezes verdadeiramente se teme descrevê-las. Porém os Celestiais, que são sempre bondosos, uma vez que tudo têm, como os ricos, possuem a virtude e a alegria. O homem pode imitá-los. Mas poderá o homem, quando toda a sua vida está cheia de trabalhos, erguer o olhar e dizer: assim quero eu ser também? Sim. Enquanto a amabilidade pura habitar no seu coração não será uma atitude infeliz o homem medir-se pela divindade. Será Deus desconhecido? Será manifesto como o Céu? Antes isto creio. É a medida do homem. Cheio de mérito, mas poeticamente, vive o homem sobre esta Terra. E no entanto a sombra da noite e as estrelas não são, se é que posso dizê-lo, mais puras do que o homem, como imagem que é da divindade. Haverá na Terra uma medida? Não, não há. É que os mundos do Criador jamais inibem o curso do trovão. Também uma flor é bela porque floresce sobre o sol. O olhar encontra muitas vezes ao longo da vida seres que seriam mais belos de nomear que as flores. Oh, como o sei bem! Pois agradará a Deus que a figura e o coração sangrem e que se deixe completamente de existir? Mas a alma, tal como penso, deve permanecer pura, pois assim chega ao que é poderoso sobre as asas de águias como um cântico de louvor e com a voz de muitas aves.
In Hinos Tardios, Assírio &Alvim, Lisboa, 2000


O consenso público


Não é mais bela a vida de meu coração
quando amo? Por quê me distinguias mais
quando eu era mais arrogante e arisco,
mais loquaz e mais vazio?


¡Ah! a multidão prefere o que se cotiza,

as almas servis só respeitam o violento.

unicamente creem no divino

aqueles que também o são.




Hölderlin
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Jules Lefebvre (1834–1912)


GRÉCIA

Tanto vale o homem e tanto vale o esplendor da vida,
Os homens ao menos são amos da natureza,
Para eles a terra formosa não está escondida,

Mas sim que com doçura se desnuda pela manhã e à tarde.



Os campos abertos são como os dias da colheita,
Ao redor se estende espiritual a velha Lenda,
Uma vida nova volta sempre à nossa humanidade,
E o ano se inclina mais uma vez silenciosamente.

(Hölderlin)

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Vladimir Volegov


O ESPÍRITO DO TEMPO




A vida é a tarefa do homem neste mundo,

E assim como os anos passam, assim como os tempos até o mais alto avançam,
Assim como a mudança existe, assim
No passar dos anos se alcança a permanência;
A perfeição se logra nesta vida
Acomodando-se a ela a nobre ambição dos homens.

Hölderlin


O CAVALEIRO POBRE


Aleksandr Pushkin (1799-1837)


Era um pobre cavaleiro
silencioso, simples,
de rosto severo e pálido,
de alma ousada e franca.
Teve uma visão,
uma visão maravilhosa
que gravou em seu coração
uma impressão profunda.
Desde então lhe ardia o coração;
afastava seus olhos das mulheres,
e até ao túmulo
não voltou a falar com nenhuma.
Pôs um rosário no pescoço,
como uma insígnia,
e jamais levantou ante nada
a viseira de seu capacete de aço.
Cheio de um puro amor,
fiel a sua doce visão, escreveu com seu sangue
A.M.D. sobre seu escudo.
e nos desertos da Palestina,
mesmo que entre as rochas
os paladinos corriam ao combate
invocando o nome de sua dama,
ele gritava com exaltação feroz:
Lumen coeli, santa Rosa!
e como o raio, seu ímpeto
fulminava aos muçulmanos.
De regresso a seu castelo longínquo,
viveu severamente como um recluso,
sempre silencioso, sempre triste,
morrendo por fim demente.

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Silvio Allason (1845-1912) - O Beijo



AMIZADE




Quando conhece-se os homens por seu valor interno

Podem com alegria chamar-se amigos,
Pois a vida é algo já tão sabido para eles
Que só no Espírito mais alta encontrá-la podem.
O Espírito nobre não é à amizade alheio,
os homens gostam das harmonias
E à confiança se sentem inclinados, vivendo para conhecer.
Também à Humanidade isto lhe fora outorgado. 


(Hölderlin)


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Momento decisivo Michael & Inessa Garmash


A PRIMAVERA


De distantes alturas descende o novo dia,
Desperta de entre as sombras a manhã,
À humanidade sorri, enfeitada e alegre,
De gozo está a humanidade suavemente penetrada.
Nova vida deseja ao porvir abrir-se,
Com flores, sinal de alegres dias,
Cobrir parece a terra e o grande vale,
levando a Primavera todo signo doloroso.

Holderlin
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François Martin-Kavel - “A Ninfa da Água”.


Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, 
Muda-se o ser, muda-se a confiança: 
Todo o mundo é composto de mudança, 
Tomando sempre novas qualidades. 

Continuamente vemos novidades, 
Diferentes em tudo da esperança: 
Do mal ficam as mágoas na lembrança, 
E do bem (se algum houve) as saudades. 

O tempo cobre o chão de verde manto, 
Que já coberto foi de neve fria, 
E em mim converte em choro o doce canto. 

E afora este mudar-se cada dia, 
Outra mudança faz de mor espanto, 
Que não se muda já como soía. 



Luís Vaz de Camões,

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Frederick Morgan (1847-1927)


Não Digas Nada!


Não digas nada! 
Nem mesmo a verdade 
Há tanta suavidade em nada se dizer 
E tudo se entender — 
Tudo metade De sentir e de ver... 
Não digas nada Deixa esquecer 
Talvez que amanhã

Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.

Fernando Pessoa

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Edvard Munch - Friedrich Nietzsche


Remédio para o Pessimismo

Queixas-te porque não encontras nada a teu gosto?
São então sempre os teus velhos caprichos
Ouço-te praguejar, gritar e escarrar...
Estou esgotado, o meu coração despedaça-se.
Ouve, meu caro, decide-te livremente.
A engolir um sapinho bem gordinho,
De uma só vez e sem olhar.

É remédio soberano para a dispepsia. 



Friedrich Nietzsche


Sabedoria do Mundo

Não fiques em terreno plano. Não subas muito alto. O mais belo olhar sobre o mundo Está a meia encosta. 
Friedrich Nietzsche

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Pablo Picasso - Maternidade



No Coração, Talvez


No coração, talvez, ou diga antes: 
Uma ferida rasgada de navalha, 
Por onde vai a vida, tão mal gasta. 
Na total consciência nos retalha. 
O desejar, o querer, o não bastar, 
Enganada procura da razão 
Que o acaso de sermos justifique, 
Eis o que dói, talvez no coração. 


José Saramago



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Alexandre-Auguste Hirsch - A musa Caliope ensina ao jovem Orfeu a arte da música




Não me Peçam Razões...



Não me peçam razões, que não as tenho, 

Ou darei quantas queiram: bem sabemos 

Que razões são palavras, todas nascem 

Da mansa hipocrisia que aprendemos. 



Não me peçam razões por que se entenda 

A força de maré que me enche o peito, 

Este estar mal no mundo e nesta lei: 
Não fiz a lei e o mundo não aceito. 

Não me peçam razões, ou que as desculpe, 
Deste modo de amar e destruir: 
Quando a noite é de mais é que amanhece 
A cor de primavera que há-de vir. 

José Saramago

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Vladimir Volegov

Saudades

Saudades! Sim.. talvez.. e por que não?... 
Se o sonho foi tão alto e forte 
Que pensara vê-lo até à morte 
Deslumbrar-me de luz o coração! 

Esquecer! Para quê?... Ah, como é vão! 
Que tudo isso, Amor, nos não importe. 
Se ele deixou beleza que conforte 
Deve-nos ser sagrado como o pão. 

Quantas vezes, Amor, já te esqueci, 
Para mais doidamente me lembrar 
Mais decididamente me lembrar de ti! 

E quem dera que fosse sempre assim: 
Quanto menos quisesse recordar 
Mais saudade andasse presa a mim! 

Florbela Espanca

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Guillaume Seignac (1870 - 1924) 


O guardador de rebanhos


Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz

E corre um silêncio pela erva fora.

Fernando Pessoa

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Guillaume Seignac (1870 - 1924) 


AQUI


Aqui, deposta enfim a minha imagem,
Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem,
No interior das coisas canto nua.
Aqui livre sou eu — eco da lua
E dos jardins, os gestos recebidos
E o tumulto dos gestos pressentidos,
Aqui sou eu em tudo quanto amei.
Não por aquilo que só atravessei,
Não pelo meu rumor que só perdi,
Não pelos incertos actos que vivi,
Mas por tudo de quanto ressoei
E em cujo amor de amor me eternizei.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Dia do Mar'
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No Jardim, Wlodzimierz Blocki.

MOMENTO


(Adélia Prado)

Enquanto eu fiquei alegre,
permaneceram um bule azul com um 
descascado no bico, 
uma garrafa de pimenta pelo meio, 
um latido e um céu limpidíssimo
com recém-feitas estrelas.
Resistiram nos seu lugares, em seus ofícios,
constituindo o mundo pra mim, anteparo
para o que foi um acometimento:
súbito é bom ter um corpo pra rir
e sacudir a cabeça. 
A vida é mais tempo alegre do que triste. 
Melhor é ser.

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O amor é que é essencial


O amor é que é essencial.
O sexo é só um acidente.
Pode ser igual
Ou diferente.
O homem não é um animal:
É uma carne inteligente,
Embora às vezes doente.

Fernando Pessoa
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Richard S. Johnson


PARAÍSO

Se houver além da Vida um Paraíso,
Outro modo de ser e de viver,
Onde p´ra ser feliz seja preciso
Apenas ser;
.
Onde uma Nova Terra áurea receba
Lágrimas, já diversas de alegria,
E em Outro Sol nosso olhar outro beba
Um Novo e Eterno Dia;
.
Onde o Áspide e o Pomba de nossa alma
Se casem, e com a Alma Exterior
Numa unidade dupla – sua e calma –
Nossa alma viva, e à flor
.
De nós nosso íntimo sentir decorra
Em outra Cousa que não Duração,
E nada canse porque viva ou morra –
Acalmaremos então?
.
Não: uma outra ânsia, a de infelicidade,
Tocar-nos-á como uma brisa que erra,
E subirá em nós a saudade
Da imperfeição da Terra.

Fernando Pessoa
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No teu rosto
competem mil madrugadas
Nos teus lábios
a raiz do sangue
procura suas pétalas
A tua beleza
é essa luta de sombras
é o sobressalto da luz
num tremor de água
é a boca da paixão
mordendo o meu sossego

Mia Couto


Idades


"No início,
eu queria um instante.
A flor.
Depois,
nem a eternidade me bastava.
E desejava a vertigem
do incêndio partilhado.
O fruto.
Agora,
quero apenas
o que havia antes de haver vida.
A semente."

Mia Couto
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São João Batista no Deserto - Mestre de Lourinhã


A Voz Que Clama no Deserto


É duro ser a voz que clama no deserto,
Palavras perdidas no vento a vagar.
Ecoam meus anseios, sem rumo certo,
Em busca de almas dispostas a escutar.

No vazio árido e vasto, me faço ouvir,
Mas o eco é fugaz, quase imperceptível.
Parece que o mundo prefere omitir,
Enquanto busco tornar o invisível visível.

Nadar contra a corrente, ousado caminho,
É enfrentar a maré que insiste em me levar.
A maioria, cega, segue em rebanho sozinho,
Sem notar que só assim não há de prosperar.

Por vezes, cansado, já pensei em desistir,
Deixar que o silêncio me envolva num abraço.
Mas a chama em meu peito insiste em resistir,
Sigo em frente, pois no íntimo sei que faço.

Ainda que árduo seja o trajeto a seguir,
Nadar a favor da corrente é mais fácil, é certo.
Mas prefiro seguir adiante e insistir,
A ser apenas mais uma voz no deserto.

Luiz Rodrigues

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Mãe e Filho [detalhe] - Gustav Klimt.


FALA DE MÃE E FILHO


Meu filho:
onde vais
que tens do rio o caminhar?
Não espreites a estrada, mãe,
que eu nasci
onde o tempo se despenhou.
Meu filho:
onde te posso lembrar
se apenas te dei nome para te embalar?
Mãe, minha mãe:
não te pese saudade
que eu voltarei sempre
como quem chega do mar.
Meu filho:
onde te posso nascer
se meu ventre seco
nunca ninguém gerou?
Mãe, nascerás sempre
na pedra em que te escuto:
a tua ausência, meu luto,
teu corpo para sempre insepulto.

Mia Couto

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Imaginação, Catrin Welz-Stein.

QUINTO MOTIVO DA ROSA


Antes do teu olhar, não era, 
nem será depois, - primavera. 
Pois vivemos do que perdura, 
não do que fomos. Desse acaso 
do que foi visto e amado: - o prazo 
do Criador na criatura... 
Não sou eu, mas sim o perfume 
que em ti me conserva e resume 
o resto, que as horas consomem. 
Mas não chores, que no meu dia, 
há mais sonho e sabedoria 
que nos vagos séculos do homem.

(Cecília Meireles)

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A menina Florbela Espanca


Eu


Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida! ...

Sou aquela que passa e ninguém vê ...
Sou a que chamam triste sem o ser ...
Sou a que chora sem saber porquê ...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!

Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas"

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Mais Triste


É triste, diz a gente, a vastidão
Do mar imenso! E aquela voz fatal
Com que ele fala, agita o nosso mal!
E a Noite é triste como a Extrema-Unção!

É triste e dilacera o coração
Um poente do nosso Portugal!
E não vêem que eu sou ... eu ... afinal,
A coisa mais magoada das que são?! ...

Poentes de agonia trago-os eu
Dentro de mim e tudo quanto é meu
É um triste poente de amargura!

E a vastidão do Mar, toda essa água
Trago-a dentro de mim num mar de Mágoa!
E a noite sou eu própria! A Noite escura!!

Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas"

.com/img/a/
Cecília Meireles - Wikipedia


NOITE 


"Úmido gosto de terra, 
cheiro de pedra lavada, 
- tempo inseguro do tempo! -
sombra do flanco da serra,
nua e fria, sem mais nada.
Brilho de areias pisadas, 
sabor de folhas mordidas, 
- lábio da voz sem ventura! -
suspiro das madrugadas
sem coisas acontecidas.
A noite abria a frescura 
dos campos todos molhados, 
- sozinha, com o seu perfume! -
preparando a flor mais pura
com ares de todos os lados.
Bem que a vida estava quieta. 
Mas passava o pensamento ... 
- de onde vinha aquela música?
E era uma nuvem repleta,
entre as estrelas e o vento."

Cecília Meireles

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OS POEMAS


"Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso 
nem porto; 
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes 
que o alimento deles já estava em ti..."

Mario Quintana - Esconderijos do Tempo

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Homero - William Adolphe Bouguereau


POETAS


"Ai as almas dos poetas
Não as entende ninguém;
São almas de violetas
Que são poetas também.
Andam perdidas na vida,
Como as estrelas no ar;
Sentem o vento gemer
Ouvem as rosas chorar!
Só quem embala no peito
Dores amargas e secretas
É que em noites de luar
Pode entender os poetas.
E eu que arrasto amarguras
Que nunca arrastou ninguém
Tenho alma pra sentir
A dos poetas também!"

Florbela Espanca

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Sócrates com um jovem aprendiz - José Aparicio Inglada


 SÓCRATES E ALCIBÍADES


— Por que és benévolo, divino Sócrates,
Com esse jovem? Maior nada concebes?
Por que o contemplas, como
Quem adora a um dos deuses?

— Quem mais fundo pensou, ama o vigor.
Quem viu o mundo, entende a juventude.
E muita vez os sábios
Prosternam-se à Beleza.

Hölderlin

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Joaquín Sorolla

A MINHA VIDA É UM BARCO ABANDONADO


A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado?

Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.

Morto corpo da ação sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.

Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.

Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'

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As Pessoas Sensíveis


As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

«Ganharás o pão com o suor do teu rosto»
Assim nos foi imposto
E não:
«Com o suor dos outros ganharás o pão»

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem

Sophia de Mello Breyner Andresen
In “Livro Sexto”

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Louis Emile Adan (1839-1937)


ALMA


Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.

1934
Poesias Inéditas (1930-1935). Fernando Pessoa. Ática.

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Johann Hubert Salentin (1822-1910)


Tabacaria


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

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Frédéric Pierre Tachaggeny


URGENTEMENTE 


É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios 
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz 
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente 
permanecer.

Eugénio de Andrade in POESIA

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Tadeusz Styka


O Amor, Meu Amor


Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.

Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.

E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.

E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.

E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.

Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.

Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.

Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.

E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.

Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.

Mia Couto 
No livro “Idades cidades divindades”

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Abel-Dominique Boyé


ABRAÇA-ME   

                 
"Abraça-me. Quero ouvir o vento que vem da tua pele, e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos. Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas. Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me com os teus antigos braços de criança, para desamarrar em mim a eternidade, essa soma formidável de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram. Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor. Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos, para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos.
Só essa água fará reconhecer o mais profundo, o mais intenso amor do universo, e eu quero que delem fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes."

Joaquim Pessoa
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Guillaume Seignac


Liberdade

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa in "Poesias"
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A Vendedora de Flores - William-Adolphe Bouguereau


O amor

MOTE

Amor é chama que mata,
Sorriso que desfalece,
Madeixa que desata,
Perfume que esvaece.
                    (popular)

GLOSAS

Amor é chama que mata,
Dizem todos com razão,
É mal do coração
E com ele se endoidece.
O amor é um sorriso
Sorriso que desfalece.

Madeixa que se desata
Denominam-no também.
O amor não é um bem:
Quem ama sempre padece.
O amor é um perfume
Perfume que se esvaece.

Mário de Sá-Carneiro
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Mark Keller



A moça atrás da vidraça
espia o moço passar.
O moço nem viu a moça,
ele é de outro lugar.

O que a moça quer ouvir
o moço sabe contar:
ah, se ele a visse agora,
bem que havia de parar.

Atrás da vidraça, a moça
deixa o peito suspirar.
O moço passou depressa,
ou a vida devagar? 

JOÃO GUIMARÃES ROSA 

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William Adolphe Bouguereau - O Segredo


Os versos que te fiz 


Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.
Têm dolencia de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!
Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!
Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!

Florbela Espanca
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William Adolphe Bouguereau - Bacante


Se Te Pertenço


Se te pertenço, separo-me de mim.
Perco meu passo nos caminhos de terra
E de Dionísio sigo a carne, a ebriedade.
Se te pertenço perco a luz e o nome
E a nitidez do olhar de todos os começos:
O que me parecia um desenho no eterno
Se te pertenço é um acorde ilusório no silêncio.

E por isso, por perder o mundo
Separo-me de mim. Pelo Absurdo.

Hilda Hilst, in 'Via Espessa'

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