| Valter Campanato/Agência Brasil |
Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP
Desde que o presidencialismo de coalisão esgotou suas virtualidades, uma vez que as diferentes formas de emendas parlamentares de execução obrigatória permitiram aos congressistas ter acesso fácil a recursos orçamentários do Executivo, um tema tradicionalmente estudado na disciplina de Teoria do Estado nos cursos jurídicos — o federalismo brasileiro — também se tornou objeto de importantes análises feitas por cientistas políticos, sociólogos do direito, economistas e especialistas em políticas públicas. Basta ver o que tem sido publicado pela imprensa – principalmente o noticiário relativo à aceleração da liberação de emendas parlamentares todas as vezes em que o governo sofre derrotas importantes no Congresso.
Muitos sociólogos do direito, por exemplo, vêm apontando as distorções representativas da estrutura federativa em vigor. Com base em dados do IBGE, eles apontam as distorções reinantes no processo legislativo, pondo luz na expansão da super-representação das bancadas parlamentares das regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste e na sub-representação das regiões Sul e Sudeste.
Segundo o Censo de 2022, embora as três primeiras regiões tenham 42,5% do eleitorado e 43,7% da população brasileira, elas detêm 74% dos assentos no Senado e 50,1% na Câmara, o que tende a submeter as decisões do Legislativo à influência e ao peso de interesses muitas vezes retrógrados. Essa distorção deve aumentar ainda mais, pois, com base no artigo 45 da Constituição, que estabelece a proporcionalidade entre o tamanho das bancadas e as populações dos estados, a Câmara e o Senado aprovaram a criação de mais 18 vagas em sua composição, das quais 12 estão destinadas às regiões sobrerrepresentadas.
Já os cientistas políticos vêm discutindo a crescente falta de comando do Executivo federal sobre seus recursos financeiros e suas dificuldades para gerir os recursos da União, dado o fortalecimento do Congresso a partir do momento em que, por meio de emendas parlamentares, passou a controlar cerca de quase R$ 60 bilhões do orçamento federal. Esses analistas também mostram como as distorções do sistema multipartidário em vigor — decorrente de um alto número de partidos sem consistência doutrinária — afetam negativamente o processo decisório na Câmara e no Senado. Igualmente, advertem para o perigo de uma crescente desorganização da administração federal e para os subsequentes riscos de enfraquecimento da capacidade de comando do Executivo sobre sua governabilidade.
Os 18 ocupantes das novas vagas criadas pela Câmara certamente seguirão a tradição da maioria de seus colegas. Ou seja, serão culturalmente toscos e repetirão sempre o mesmo argumento. Segundo eles, a Constituição teria municipalizado as políticas públicas sem, contudo, transferir os recursos necessários. Também não hesitarão em fazer pressões para transferir — via emendas parlamentares sem critérios técnicos e sem uma visão de país — recursos da União para seus redutos eleitorais. Por isso, ao deixar para segundo plano a definição de prioridades nacionais e regionais e passar longe do financiamento de projetos e de obras públicas estruturantes, o que se terá é um aumento da pulverização de recursos, de gastos perdulários, de fisiologismo e de clientelismo.
Por seu lado, economistas e pesquisadores em políticas públicas perguntam-se como, numa democracia federativa, é possível distribuir os poderes de modo racional e sem ferir os princípios de legitimidade e de eficiência. Com base na premissa de que o orçamento é a materialização da democracia, em seus artigos na mídia eles enfatizam a necessidade de recuperar a legitimidade do sistema representativo, por um lado, e de ampliar os padrões de racionalidade, transparência e credibilidade das decisões legislativa, por outro.
Eles mostram, igualmente, que as Assembleias Legislativas — cujo número de deputados estaduais é vinculado ao número de deputados federais — já estão seguindo a mesma linha da Câmara, empenhando-se cada vez mais para multiplicar emendas parlamentares impositivas, o que tende a desfigurar o papel do orçamento no plano subnacional. Nos estados de Mato Grosso e Amazonas, suas Assembleias Legislativas já asseguram R$ 20 milhões em emendas para cada deputado. Em Minas Gerais, um dos estados mais endividados da federação, a Assembleia aprovou R$ 2,17 bilhões para emendas parlamentares, em 2025.
“É uma praga que se disseminou, replicando um modelo que, no Congresso, vem assegurando elevadas taxas de reeleição”, diz o cientista político Bruno Carazza, da Fundação Dom Cabral. É um aumento de poder exigência de maior responsabilidade decisória, o que está levando fornecedores de bens e serviços ao poder público a direcionar seu lobby junto a prefeitos e vereadores, aponta Fernando Abrucio, da FGV-SP. Trata-se de um presidencialismo disfuncional, em decorrência da disparada nos valores das emendas parlamentares, erodindo os poderes do presidente da República, diz Sérgio Abranches. É um processo antipolítico que as ciências sociais definem como uma negação das instituições representativas, afirma Marco Teixeira, também da FGV-SP.
Já entre os economistas, há quem sugira que o aumento da transparência e da credibilidade do processo legislativo poderia começar pela revogação do dispositivo constitucional que limita em 70 cadeiras a representação das unidades mais populosas da federação na Câmara – um teto que prejudica basicamente o Estado de São Paulo. Esse processo poderia evoluir para a própria revisão dos demais critérios vigentes em matéria de representatividade legislativa no País.
Com base nos trabalhos do cientista político Rein Taagepera, da Universidade da Califórnia, a economista Lara Mesquita, da FGV, lembra que o modo mais simples para assegurar o tamanho ótimo do Legislativo brasileiro seria adotar “um número de parlamentares proporcional à raiz cúbica da população”. Essa é uma medida que proporcionaria maior equilíbrio entre representatividade e eficiência, evitando que cada congressista represente um contingente populacional excessivo e dificulte a comunicação entre representantes e representados, disse ela em artigo na Folha de S.Paulo.
Obviamente, parlamentares com os predicados de um Davi Alcolumbre, de um Arthur Lira ou de um Hugo Motta, eleitos por estados que têm 571 mil, 2,4 milhões e 3 milhões de eleitores, respectivamente, com toda certeza resistirão a revogar as distorções federativas que os beneficiam e lhes ampliaram o poder em âmbito nacional. Contudo, mesmo que continuem alardeando que “o Executivo tem de deixar de usurpar atribuições do Legislativo”, nada impede que a imprensa continue dando eco às importantes análises feitas por pesquisadores e especialistas em seus artigos.
Ainda que não tenha condição de propiciar soluções eficazes no curto prazo, o debate nas páginas políticas e econômicas da imprensa tem a virtude de abrir um horizonte de sentido para que, no plano político-institucional, a democracia brasileira seja mais representativa. E, em matéria de governabilidade, para que o País tenha meios para deter o recurso a expedientes de duvidosa constitucionalidade usados pelo governo para fechar as contas públicas.
É esse o caso do aumento do IOF, por meio de um decreto do Executivo. Ao converter um tributo regulador em tributo arrecadador destinado a ampliar a receita da União, a iniciativa pecou pelo que os juristas chamam de “desvio de finalidade”. E como um partido alinhado com o governo anunciou que recorrerá ao STF, desprezando esse vício jurídico e ao mesmo tempo alegando que a derrubada do decreto do Executivo pelo Congresso infringiu a separação do Poderes, isso só tende a ampliar a judicialização da gestão de recursos públicos. E, por consequência, a agravar ainda mais a crise de governabilidade, abrindo caminho para uma paralisia decisória.


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