Foto: Chico Caruso / Agência O Globo
Quando Vladimir Putin ascendeu ao poder no fim dos anos 1990 — uma década perdida para a Rússia — ele herdou não a União Soviética, mas sua carcaça. A superpotência que havia sustentado um PIB colossal e desafiado os Estados Unidos em todos os campos agora se parecia com um Estado periférico, uma economia combalida, ainda que resguardada por um arsenal nuclear que ninguém ousava esquecer. A URSS havia se dissolvido, mas as ogivas não evaporaram.
Era o auge da hegemonia americana, o triunfo da globalização, e a retórica de Francis Fukuyama sobre o "fim da história" ainda circulava como artigo de fé em universidades e jornais. Nesse cenário, o ex-agente da KGB cavou a trincheira do nacionalismo russo. Ao contrário de Mikhail Gorbachev — que a história oficial no Ocidente tentou consagrar como democrata de ocasião, talvez o mais democrático dos autocratas russos — Putin não acreditava que liberalismo fosse compatível com sobrevivência política em Moscou. E, como o tempo mostrou, ele estava certo: o breve regime liberal, que mal durou duas décadas, foi engolido pelo retorno da tradição histórica russa, feita de czares, tiranos e homens fortes.
Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, a história movia suas placas tectônicas. A emergência da China como superpotência mundial, não apenas militar mas sobretudo comercial, erodia silenciosamente o pilar da globalização que os Estados Unidos haviam construído para si. A ironia é óbvia: o discurso da globalização foi útil enquanto servia a Washington; quando Pequim começou a ditar os termos, o jogo mudou.
Foi nesse cenário que emergiu Donald Trump — o bufão, o empresário falido transformado em celebridade televisiva, que chegou à Casa Branca encarnando não o triunfo do capitalismo americano, mas o desespero de sua classe média branca. Putin não poderia sonhar com aliado mais conveniente: um presidente dos Estados Unidos que, diante das câmeras, suspirava em adoração por ditadores.
A história, como se vê, não havia terminado. A globalização sobrevive nos cabos de fibra óptica e nos portos lotados de contêineres, mas sua narrativa integradora morreu. No lugar do otimismo dos anos 1990, temos o retorno da geopolítica nua e crua: nacionalismos agressivos, guerras regionais e líderes que desdenham da democracia liberal. Putin não derrotou os Estados Unidos sozinho; foi a própria hegemonia americana que implodiu, corroída por dentro. Trump foi apenas o sintoma mais caricatural.
Assim, com a cadelinha no comando em Washington, Putin deixou de ser apenas o líder de uma potência em declínio para se tornar o arquiteto irônico de uma nova ordem mundial. Uma ordem que, gostemos ou não, já não obedece mais ao mesmo dono.


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