Tantos cães famintos pelas ruas, e a única certeza é que a desgraça deles foi confiar nos homens. Vivessem em liberdade, entre as árvores e os ventos, teriam caça, teriam instinto e um destino natural. Mas foram seduzidos pela quentura do fogo e o cheiro da sopa humana, e pagam hoje o preço da confiança: uma coleira no pescoço e o resto de comida no prato de lata.
Ingênuos os cães. Aproximaram-se da mais desastrada das espécies — a que inventou o cimento, o relógio e a saudade. O homem, esse animal que se vangloria de pensar, acabou escravizado pelas próprias ideias. O cão, quando tem fome, caça. O homem, quando tem fome, cria supermercados e leis de oferta e procura. E ainda acredita que é livre.
Rousseau, esse velho relojoeiro das ideias, percebeu cedo o mal: foi a razão que desgraçou a humanidade. Desde que o primeiro homem olhou para o vizinho e disse “isto é meu”, começou a desordem universal. O cão, que nada possui, dorme tranquilo sob a marquise; o homem, que possui tudo, dorme inquieto em lençóis caros.
Há quem diga que o progresso é benção. Eu, mais cauteloso, prefiro chamá-lo de mania. Porque o homem constrói cidades, mas nelas perde o ar; inventa máquinas, mas se torna servo delas; compra alimentos, mas já não sabe o gosto das frutas. E o cão — pobre cão! — herdou também o vício humano de depender da piedade alheia.
Os cães, ao menos, ainda abanam o rabo quando veem alguém. O homem, esse, já desaprendeu a alegria simples de existir.
Talvez, se Rousseau tivesse reencarnado em vira-lata, compreenderia que a salvação da espécie seria voltar a ser bicho.



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