Mensalão: conheça possibilidades dos recursos no tribunal internacional - Blog A CRÍTICA

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terça-feira, 30 de outubro de 2012

Mensalão: conheça possibilidades dos recursos no tribunal internacional


Três dos principais réus do Mensalão condenados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, o ex-presidente do PT José Genoíno e o deputado federal Valdemar Costa Neto (PR-SP) – já adiantaram que vão recorrer à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA).

Criado em 1969 pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos – mais conhecida como Pacto de San José (Costa Rica) –, o tribunal internacional foi reconhecido pelo Brasil somente em 1992. O tratado internacional é um compromisso dos Estados signatários de consolidar os direitos humanos no continente, por meio de uma série de medidas.

As declarações dos condenados foram ironizadas por ministros do STF. O ministro Marco Aurélio Mello disse que a reclamação à OEA é “direito de espernear”. Apesar de ministros do STF terem desconsiderado a possível manobra, as intenções geraram polêmica no meio jurídico e não há consenso a respeito dos eventuais efeitos que uma decisão favorável aos réus poderia ter no julgamento realizado pelo STF.

Para tentar equacionar essa questão, o Contas Abertas consultou diversos especialistas, das mais variadas áreas do Direito. Os seis tópicos abaixo trazem os conceitos e as opiniões mais pertinentes ao caso.

É possível recorrer de decisão do STF a uma corte internacional?

Nas palavras de Carlos Velloso, ministro aposentado do STF, "ninguém pode impedir o sujeito de se dirigir até ao Papa, se quiser". No entanto, como o Brasil é signatário do Pacto e, portanto, reconhece a Corte Interamericana, a apelação é possível. Porém, como não há hierarquia entre o STF e as cortes internacionais, a apelação seria na forma de petição, não de recurso.

George Galindo, diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em direito internacional, explica que a petição pode ser apenas um pedido para analisar se o processo transcorreu contra o que diz o pacto internacional, por exemplo. “Vai depender do que os possíveis afetados queiram conseguir", pondera.

O ministro Carlos Velloso dá o passo-a-passo do procedimento a ser seguido. "Primeiramente, a Comissão determina se tem competência para atuar. Se entender que sim, notifica o Estado e passa a examinar a questão. Ao final, ela produz relatório e encaminha ao Estado, para que remedeie a situação. Se ainda assim persistir o impasse, então a Comissão pode decidir por levar o caso à apreciação da Corte Interamericana”, explica.

O que os réus pretendem alegar?

Todos os condenados que sinalizaram a intenção de apelar do resultado usam o mesmo argumento: as garantias judiciais do Pacto. O trecho a que se apegam Dirceu, Genoíno e Costa Neto é o que diz que todo acusado tem o direito de "recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior". A alegação dos réus é que esse direito teria sido negado a eles, já que o julgamento foi realizado de imediato na instância máxima do Judiciário brasileiro.

Isso aconteceu porque três réus – o próprio Valdemar Costa Neto, João Paulo Cunha (PT-SP) e Pedro Henry (PP-MT) – são deputados federais, e, portanto, contam com foro privilegiado. Os outros 35 réus receberam o mesmo tratamento porque o STF entendeu que as conexões entre as acusações não permitiam o desmembramento da ação penal.

Poderia dar certo?

O jurista Luiz Flávio Gomes, especialista em direito processual penal, cita julgamento recente da Corte Interamericana que pode servir de precedente para os condenados do Mensalão. Trata-se do caso "Barreto Leiva vs. Venezuela".

Em 2009, Oscar Enrique Barreto Leiva, ex-diretor de um ministério, apelou ao órgão de um processo que respondia como réu juntamente com o ex-presidente Carlos Andrés Pérez e outras autoridades detentoras de foro privilegiado. Leiva, que não tinha a prerrogativa, foi julgado e condenado pelo órgão máximo do Judiciário venezuelano. Após reclamação, a Corte decidiu que Leiva, assim como os réus com foro privilegiado, tinha o direito a recorrer e deveria, portanto, ter novo julgamento.

Na visão de Gomes, o precedente encaixa-se "como uma luva" no caso brasileiro. "Depois de estudar atentamente esse caso, estou seguro de que o julgamento terá que ser revisado", afirma. Segundo o jurista, o caráter constitucional do foro privilegiado não deve se sobrepor ao pacto internacional.

"Quando assinamos o Pacto, não fizemos nenhuma reserva em relação à garantia do duplo grau de jurisdição. O artigo 5º da Constituição diz que os direitos e garantias constitucionais não excluem aqueles decorrentes de tratados que o Brasil tenha assinado. É preciso sempre adotar a interpretação mais benéfica para o réu, que, nesse caso, é a do tratado", diz o jurista.

Nesse caso, o que aconteceria?

Gomes crê que a Corte poderia, na hipótese de dar razão aos condenados do Mensalão, impor ao Brasil a obrigação de garantir novo julgamento. "O julgamento já realizado não seria anulado, mas o caso seria levado a tribunal novamente. Como não há instância acima do STF, o novo julgamento aconteceria no próprio Supremo", explica.

Essa possibilidade, entretanto, traria o risco de anulação e prescrição para algumas condenações. Antes mesmo de o caso chegar à Corte já seria possível transformar as decisões do STF em provisórias. "Os advogados poderão tentar, junto à Comissão Interamericana, a obtenção de uma inusitada medida cautelar para suspensão da execução imediata das penas, até que seja respeitado o direito ao duplo grau. Se isso viesse a ocorrer, os réus aguardariam em liberdade".

O professor George Galindo também entende que a Corte pode criar uma obrigação para o Brasil, mas não enxerga o caráter impositivo. "As sentenças proferidas pela Corte são obrigatórias. Contudo, o tribunal internacional não tem o poder de anular o julgamento, porque não é dotado de instrumentos para fazer valer sua decisão. A Corte apenas tem o poder de estabelecer que o Brasil está violando a Convenção Americana de Direitos Humanos", diz.

Porém, outros órgãos internacionais podem ser acionados e, nesse caso, o Brasil sofreria alguma penalidade. "A Corte tentaria encontrar a forma mais conveniente para o Brasil cumprir a decisão. Se não cumprir, o caso pode ser levado à OEA, que poderia determinar sanções contra o Brasil, inclusive a própria expulsão da organização", informa Galindo. O professor, no entanto, não acredita nessa possibilidade. "A OEA nunca fez isso. Politicamente, é quase impossível que aconteça", aponta.

Para Gomes, a Corte pode até obrigar o Brasil a ajustar o direito interno – e até mesmo a Constituição – para corrigir possíveis afrontas à Convenção Americana de Direitos Humanos. Por sua vez, Galindo explica que isso é possível, mas não de forma categórica.

Galindo cita um caso concreto para ilustrar. Em 1988, o filme A última tentação de Cristo, do cineasta americano Martin Scorsese, foi banido no Chile. A Constituição chilena permitia, na época, que um órgão do governo realizasse esse tipo de censura prévia. O caso foi à Corte, que decidiu que a Constituição do Chile estava em desacordo com a Convenção Americana.

"Eles não falaram que o Chile tinha que mudar a Constituição, mas, de forma indireta, fizeram um 'convite' a alterá-la", elucida Galindo. "O Chile tinha duas opções: ou ele mantinha a Constituição e era considerado violador da convenção, ou mudava para se adequar. E mudou", conta o professor. Ele completa: "Se não mudasse, a responsabilidade persistiria até hoje. Mas a Corte não pode mandar: 'Mude a Constituição'. Há certa sutileza nos pedidos".

Por que poderia não dar em nada?

Por outro lado, o fato de o Pacto de San José estar abaixo da Constituição é justamente o que é invocado por aqueles que não acreditam que a apelação vá surtir efeitos. Apesar de reconhecer o direito à tentativa "para o José Dirceu ou para o Fernandinho Beira-Mar", Aylton Barbosa, procurador de justiça e especialista em direito constitucional, não admite a hipótese de o tratado internacional se sobrepor à Constituição. "O STF já disse que só os tratados existentes antes de 1988 podem ter dispositivos equiparados ao nível constitucional. Isso não se aplica aos posteriores", alerta. Isso, portanto, excluiria o Pacto de San José, assinado pelo país em 1992.

Além disso, ele reforça a necessidade de se respeitar a forma como o Brasil reconhece o princípio do duplo grau de jurisdição. O ministro aposentado Carlos Velloso concorda: "A interpretação da Constituição não pode ter como consequência a submissão do Estado a uma jurisdição internacional".

Para explicar seu ponto de vista, Velloso interpreta as intenções do documento internacional. "Não acho que a Convenção exija o duplo grau de jurisdição em todos os casos. O espírito dela é proporcionar medidas que impeçam a ofensa a direitos. No direito brasileiro, mais do que o duplo grau, existe pluralidade dos graus, da forma disposta na Constituição e nas leis processuais".

Velloso prossegue defendendo que, assegurada essa etapa, são admissíveis exceções. "A própria Constituição estabelece a competência originária do STF para o processo e julgamento dos agentes públicos. Sendo assim, não se pode admitir que a Convenção afete esse aspecto", resume.

Opinião semelhante tem Barbosa. "Até a Corte entende que, quando o juízo já for o Tribunal máximo do país, não há como recorrer e não haveria ofensa ao tratado". Para ele, não é possível aplicar o tratado no que for contrário às regras nacionais. "O que está colocado na Constituição não se discute. As convenções internacionais são assinadas mantendo-se o respeito à legislação dos países". Velloso completa: "Há que se respeitar o direito interno".

Barbosa recorda que, em casos em que a Corte decidiu contra o Brasil, a justificativa foi que o país, além de desrespeitar o tratado, não estava cumprindo as próprias leis. "A Corte tem um histórico, e já condenou o Brasil várias vezes, mas em situações de tortura, semiescravidão, presos em condições desumanas, coisas assim. Não me recordo de a Corte ter alterado uma decisão de um tribunal brasileiro".

Como fica a questão da soberania nacional?

A principal dúvida em relação à possibilidade de apelação dos réus do Mensalão a uma corte internacional diz respeito à soberania nacional. Afinal, o país não é soberano para conduzir seus assuntos? Ou é possível contestar decisão final da Justiça brasileira em nível internacional?

O jurista Luiz Flávio Gomes não vê contradição. "O Brasil tem soberania sim, mas a exerceu quando assinou o Pacto e aceitou se submeter às decisões da Corte", resume. Para ele, afirmar que a Corte Interamericana não teria poderes para interferir no julgamento do STF não faz sentido. "Nada mais equivocado do que essas conclusões, totalmente desatualizadas", critica.

O ministro Carlos Velloso discorda. "O Brasil é soberano para dispor a respeito da sua Constituição. Essa soberania ele não cedeu a nenhum órgão supraestatal. Ninguém vai dizer como deve o Brasil legislar, governar ou decidir".

Para ele, o dilema do foro privilegiado e de seus efeitos sobre o princípio do duplo grau de jurisdição deve ser resolvido internamente. "O foro privilegiado é problema nosso. Vamos discutir a questão no Brasil. Eu sou, aliás, contra. Acho uma excrescência. Você não pode parar o STF para processos criminais, ele tem missão muito mais importante. Mas, se a Constituição o estabelece, vamos cumprir. O que não nos impede, no entanto, de criticá-lo. Mas tudo dentro da nossa soberania. Não somos um país de quarta classe", conclui.


Guilherme Oliveira e Filipe Marques
Do Contas Abertas


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