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domingo, 15 de dezembro de 2013

Nuestro sul – Aby Ayala

Em toda a América Latina, “o paradigma é o mesmo: produzir para avançar. Até bem pouco tempo a esquerda era uma pedra incômoda no sapato do capital, hoje precisa de seu auxílio para sua política de governo”. O comentário é de João Paulo Medeiros, professor da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte – UERN em Mossoró, integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP e ativista social.

Segundo João Paulo, “não fomos capazes de realizar qualquer reforma estrutural que negasse a lógica do capital no processo de desenvolvimento da América Latina, ao contrário, entramos na última moda da 5ª Avenida de New York, o neodesenvolvimentismo”.

Eis o artigo.

A América Latina é como um imenso mosaico de expressões culturais, naturais e históricas que tendem a se unir harmonicamente. No início do século XVIII Simon Bolívar já percebera isso. Nós, brasileiros, somos o povo que menos se apoderou dessa aproximação digamos que, espiritual. Dentre outros fatores talvez o isolamento territorial – grande parte de nossas fronteiras é floresta - e o idioma - único a adotar a língua portuguesa como oficial - influencie um pouco. Frei Betto gosta de mencionar que a história política recente do continente é reflexo dessa unidade.

De meados dos anos 50 até os anos 80 grande parte dos países viveu sob ditaduras apoiadas pelos EUA, foi assim com a Argentina, Chile, Brasil, Paraguai, Cuba e Equador. Diante da insustentabilidade desses regimes o capital fez outra aposta, a qual ele batizou com o singelo pseudônimo de “neoliberalismo”. Não eram mais os tanques e a tortura que impunham amarras à população, agora o mercado globalizado, com uma fantasiosa aparência de liberdade, que seria o responsável por esse julgo. Isso se daria até meados dos anos 2000 (esse fim, porém, é questionável, como discutiremos mais a frente).

Todavia, em decorrência principalmente de movimentos surgidos na base, que conseguiram canalizar toda a insatisfação da população em resultados nas urnas, florescem na América Latina diversos governos com perfil de esquerda ou pelo menos centro esquerda. No Equador Rafael Correa, na argentina Cristina Kirchner, no Paraguai o Bispo Fernando Lugo, na Venezuela Hugo Chaves, Lula no Brasil, na Bolívia Evo Morales e no Uruguai Pepe Mujica.

Mudanças sociais sensíveis começaram a acontecer. No Brasil milhões saem da linha de pobreza; Venezuela e Equador erradicam o analfabetismo e na Bolívia depois de séculos os índios tem participação politica. A emergência de governos progressistas potencializou a aproximação entre os hermanos latinos. Quer dizer então que vencemos e o capital está em um auto-exílio em Miami se saciando das últimas coca-colas existentes? Infelizmente não chegamos a esse ponto, e ainda corremos o risco de estarmos nos inserindo no processo inverso. Com a honrosa exceção da Venezuela e a heroica resistência cubana, em que pese os avanços sociais, ainda não fomos capazes de realizar qualquer reforma estrutural que negasse a lógica do capital no processo de desenvolvimento da América Latina, ao contrário, entramos na última moda da 5ª Avenida de New York, o neodesenvolvimentismo.

Mudaram-se alguns princípios, mas o paradigma é mesmo: produzir para avançar. Até bem pouco tempo a esquerda era uma pedra incômoda no sapato do capital, hoje precisa de seu auxílio pra sua política de governo. A maioria, talvez, ainda não tenha percebido o perigo dessa escolha. E nessa roleta russa (?) do mercado sobram as balas pros povos tradicionais e a natureza, históricos “inimigos do desenvolvimento”. Hidroelétricas, portos, nucleares, privatização do petróleo, estádios... parafernália...cartões postais dessa mais nova geografia sócio-política do grande continente, enquanto isso, na sala de estar, as multinacionais acumulam recordes de lucro. Em Belo Monte povos indígenas serão apagados da história.

No sertão nordestino seis mil agricultores desterritorializados na Chapada do Apodi. E no mesmo vagão desse trem, os Estados vem perdendo a capacidade de ouvir e dialogar com os grupos afetados. Não quero dizer que os avanços dos últimos anos não foram significativos, o que afirmo é que até agora as nossas conquistas com suor e sangue permanecem ainda dentro da aceitabilidade da direita, que não permitirá mais avanços, e que para maiores mudanças será necessário rompimentos mais radicais, sob o risco da dormência governamental e uma guinada à direita.

O jogo está cantado: romper e avançar ou permanecer e regredir. De antemão tiramos alguns aprendizados do que vivemos até aqui: primeiro, o Estado representativo, mesmo que com um manto de esquerda, não nos serve mais. Precisamos democratizar a democracia (Boaventura Santos). Em geral as representações partidárias, elevadas à governança, não tiveram a sensibilidade de ouvir o apelo de vozes que fugissem à cacofonia da produtividade. O tempo dos partidos é também de homens e mulheres partidas. “Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto e escreve-se na pedra” (Drummond).

Segundo, a esquerda precisa também se reinventar. A lógica ocidental de consumo, insistentemente adotada pela esquerda ortodoxa é cada vez mais assassina, suicida, ecocida e pobrecida. O filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard afirmou: [A sociedade de hoje] é um navio que está nas mãos do cozinheiro de bordo; e as palavras transmitidas pelo auto-falante do comandante não dizem mais respeito à rota (que já não interessa), mas ao que se comerá em seguida”. A busca desenfreada pelo produtivismo sem limites (seja de direita ou esquerda) fez com que hoje nós ultrapassássemos em 30% o limite de auto-sustentabilidade da Terra.

Apenas um planeta para nós já não é mais suficiente. Consumimos em pouco mais de duzentos anos o que a natureza custou bilhões de anos para construir. Fruto da busca pela super-produção de produtos inúteis que duram cada vez menos. Rasgamos os limites da terra, desde a procura desenfreada por minérios e recursos naturais, passando pela poluição gerada pelas indústrias e suas toneladas de lixo, chagando ao descarte dos produtos que usamos cada vez mais por menos tempo. Em contraste a essa busca lunática pelo lucro, segundo relatório da ONU, mais de 900 milhões de pessoas passam fome no mundo. Especialistas afirmam que a doença do futuro será a depressão, fruto do vazio existencial pregado pelo sociedade “civilizada”.

Estamos em um grande barco chamado Terra e que todos, queiramos ou não, teremos um destino comum. Nessa barbárie os indígenas e povos tradicionais são os mais afetados, mas também os únicos que podem nos jogar um bote salva-vidas. Engatemos a marcha ré e busquemos na sabedoria de nossos antepassados o caminho a seguir. É em nossas raízes não civilizadas, principalmente a indígena, que encontraremos a bússola capaz de nos guiar pelo caminho correto de ruptura com esse sistema de morte. Para isso teremos que passar por um processo “descivilizatório”, contrariando tudo que nos é imposto como civilizado, principalmente a lógica do consumo. É momento de se repensar a esquerda a partir dos paradigmas que nossos povos construíram milenarmente, e não são poucos. Sumak kawsay, sociedade do bem-viver para as tribos andinas; Lekil Kuxlejal para os Mayas.

Impressiona a unidade dos povos ancestrais com a Pacha Mama (Mãe Terra), chegando ao ponto de formar uma só coisa, como nas palavras de CHANK'IN, ancião indígena Lacandon: “O que a gente da cidade não compreende é que as raízes de todos os seres vivo estão entrelaçadas. Quando uma árvore majestosa é derrubada, cai uma estrela do céu. Antes de se cortar uma árvore se deveria pedir licença ao guardião das estrelas”. A opção por uma vida simples, banhada pelo necessário, chamada de eco-simplicidade, é outra meta a ser atingida.

Como disse Gandhi, “é preciso viver mais simplesmente para que os outros simplesmente possam viver”. Uma revolução que não seja medida pela capacidade de consumir e ser consumido, mas que possua uma cosmovisão que incorpore o carinho, o cuidado e o afeto. Uma revolução que não nos ensine a cuidar do outro não será uma transformação completa. Rejeitar a alienação que nos é imposta de que a nossa felicidade está condicionada a aquisição que bens de consumo é algo urgente. Volver nossa felicidade para as coisas que realmente importam fará com que nos reencontremos com nós mesmos, já que separados pelo vazio cotidiano.

Aqui das selvas do México tem ecoado uma guerrilha poética que se traduz em Zapatismo. Desde que saíram de um silêncio de dez anos e tomaram várias cidades do estado de Chiapas os zapatistas começaram a construir um outro mundo possível. Guiados por uma luta contra o capital somada a uma visão de esquerda que incorpora a cosmovisão dos povos ancestrais - “um mundo onde caibam todos os mundos” “Para todos tudo, para nós nada” “abaixo e esquerda está o coração” - os filhos da noite reinventam, a seu modo, a luta anticapitalista.

Mas essa é uma história pra outro momento... De pronto, ouçamos o grito que vem de baixo e façamos eco, assim seremos bievenidos a la dignidad rebelde....“Escutaram? É o som do seu mundo desmoronando. É o do nosso ressurgindo. O dia que foi o dia, era noite. E noite será o dia que se tornará o dia. Democracia! Liberdade! Justiça!”

San Cristobal de las Casas, Chiapas, México, Aby Ayala.

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