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segunda-feira, 9 de junho de 2014

O menino que escrevia versos – De MIA COUTO

O menino que escrevia versos

Mia Couto – Escritor Moçambicano



         De que vale ter voz se só quando não falo é que me entendem?

De que vale acordar se o que vivo é menos do que o que sonhei?

(Versos do menino que fazia versos)





         - Ele escreve versos!

         Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.

         - Há antecedentes na família?

         - Desculpe, doutor?

         O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava-a bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias.

         - Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.

         Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.

         - São meus versos, sim.

         O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-esfrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?

         Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.

         - O médico que faça revisão geral.

         Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitasse o nível do óleo na figadeira (fígado). Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.

         Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar  num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:

         - Dói-te alguma coisa?

         - Dói-me a vida, doutor.

         O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:

         - E o que fazes quando te assaltam essas dores?

         - O que melhor sei fazer, excelência.

         - E o que é?

         - Sonhar.

         O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há. Só no antigamente Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:

         - Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clínica psiquiátrica.

         A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.

         Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendidos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.

         - Não continuas a escrever?

         - Isso que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida – disse, apontando um novo caderninho – quase a meio.

         O médico chamou a mãe à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.

         - Não temos dinheiro – fungou a mãe entre soluços.

         - Não importa – respondeu o doutor.

         Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.

         Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração, E o médico, abreviando silêncios.

         - Não pare, meu filho. Continue lendo…

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