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terça-feira, 1 de julho de 2014

Crise no Iraque implode o projeto geoestratégico dos EUA para o Médio Oriente

A insistência da Arábia Saudita para acirrar o confronto étnico-religioso entre sunitas e xiitas contribuiu para fazer implodir o projeto dos EUA no Iraque. Um projeto que os contribuintes dos Estados Unidos ainda estão a pagar. Por Achille Lollo, de Roma para o Correio da Cidadania

Em janeiro de 2014, os grupos armados jihadistas que integram a estrutura militar do EIIL (Exército Islâmico do Iraque e do Levante), depois de terem aniquilado fisicamente os batalhões do exército iraquiano que defendiam a cidade de Fallujah, no centro do Iraque, lançaram outra ofensiva, desta vez contra Tikrit, Tal Afar e Mossul, as cidades da região petrolífera no nordeste do Iraque.
A rendição do triângulo petrolífero aconteceu inesperadamente na primeira semana de junho, devido à falta de preparação do exército iraquiano. Algo que ficou evidente, sobretudo, na defesa de uma cidade tão importante como Mossul, onde o governo de Bagdá administrava a principal refinaria do Iraque, além de ter uma sucursal do Banco Central, que nos seus cofres guardava 465 milhões de dólares e cerca de 80 quilos de lingotes de ouro.
Este fato, associado à brutalidade dos combatentes do EIIL, que, em Mossul, assassinaram todos os prisioneiros civis e militares de religião xiita e cristã, foi relatado pelas televisões do mundo inteiro, tornando ainda mais firme a liderança de Abu Bakr al Baghdadi.
Por outro lado, a ousadia do líder do EIIL de atacar diretamente o governo de Bagdá fez com que os combatentes jihadistas fossem tratados com simpatia pelos sunitas, ao ponto de receberem o inesperado consenso por parte dos “Conselhos do Despertar” da Confederação Tribal Sunita dos Dulaimi, que controla, quase por inteiro, a província de al-Anbar, considerada a antessala da capital Bagdade.
A rapidez com que o EIIL se moveu na província de al-Anbar, com quase 20.000 homens, muito bem armados e na sua maioria vindos dos campos de batalha da Síria, assustou os estrategistas da Casa Branca, enquanto o pânico tomou conta de muitas embaixadas europeias, provocando o imediato aumento em cinco dólares do preço do barril do petróleo. Porém, a sensação de desastre e de derrota deu-se quando o primeiro-ministro do Iraque, Nuri al-Maliki, pediu aos EUA para enviarem urgentemente caças-bombardeiros e pilotos para aniquilar com bombas de fósforo branco e fragmentação as posições dos homens do EIIL em Mossul e Qaim. Esse pedido, de fato, provocou, ainda mais, a histeria do presidente dos EUA e da chanceler da Alemanha, Ângela Merkel. Um cenário que estimulou os combatentes do EIIL a avançar em direção à capital Bagdá – por isso, no dia 15 de junho, os grupos armados de Abu Bakr al Baghdadi assumiram o controle das quatro cidades estratégicas da província de al-Anbar (Qaim, Rutba, Rawa e Anah). A seguir, no dia 19, outros grupos atacaram os destacamentos do exército iraquiano em al-Walid e em Turaibil – importantes postos fronteiriços com a Síria e com a Jordânia –, para depois, no dia 23, atacarem a refinaria de Baiji, localizada a 200 km da capital Bagdade.
Em resposta, Barack Obama, orientado pelos generais do Pentágono e os diretores da CIA, rejeitou o pedido do primeiro-ministro do Iraque, reduzindo a ajuda militar a 300 especialistas em tecnologia para operações de informações (espionagem eletrónica), além de reforçar a defesa da embaixada dos EUA em Bagdá com 280 fuzileiros. De fato, para os militares norte-americanos, o Iraque é um capitulo fechado, que, além de ter custado mais de 2,2 biliões de dólares ao Tesouro dos EUA, em termos políticos não alcançou os objetivos estratégicos fixados durante os dez anos de ocupação.
Ao mesmo tempo, a Casa Branca enviava o Secretário de Estado John Kerry primeiro ao Egito e depois ao Curdistão, com o dúplice objetivo de entender o que estava a acontecer no Iraque e como intervir para impedir a chegada dos fundamentalistas do EIIL em Bagdá. Assim, no Cairo, John Kerry tentou negociar com o presidente do Egito, Abdul Fatah Khalil Al-Sisi, uma possível intervenção militar do exército egípcio, caso os combatentes do EIIL rompessem as linhas de defesa montadas na periferia da capital e assim ameaçassem tomar Bagdade definitivamente de assalto.Por isso, Barack Obama ordenou ao primeiro-ministro do Iraque, Nuri al-Maliki, que acabasse com o sectarismo político e, portanto, dissolvesse a coligação que havia vencido as eleições, para formar um governo de emergência nacional com a participação dos partidos sunitas e do ex-primeiro-ministro interino, Iyad Allawi, notoriamente conhecido por ser um homem da CIA. Desta forma, Obama – cuja arrogância fez lembrar o presidente Herbert Hoover quando se relacionava com os regentes das "Repúblicas das bananas" da América Central – esqueceu que os xiitas representam 61% da população do Iraque, enquanto o partido islâmico (xiita) Da’wa ganhou as eleições pela segunda vez, liderando uma coligação que recebeu 65% dos sufrágios, dos quais 41%, isto é 5.021.137, foram votos do próprio Da’wa. Além disso, Nuri al-Maliki representa aquela corrente xiita que fez de tudo para estabelecer no Iraque o Estado de Direito com governos constitucionais maioritários, tal como os governadores militares dos EUA impuseram durante os dez anos de ocupação.
Kerry tentou aliciar Al-Sisi com a ampliação da cooperação militar entre os dois países, mas não conseguiu, pois a situação no interior do Egito é extremamente precária. De fato, Al-Sisi foi muito sincero em dizer que todas as unidades do exército estavam empenhadas em reprimir os grupos armados surgidos após a dissolução parlamentar do partido da Irmandade Muçulmana, além de dever exercer um controlo territorial em toda a península do Sinai e na região de Luxor, ao longo do rio Nilo, onde se tinham concentrado os bandos jihadistas.
A seguir Kerry foi a Erbil, capital da região autónoma do Curdistão, para encontrar o presidente Massoud Barzani, que, apesar de ser um “estreito amigo dos EUA”, não garantiu a participação dos partidos curdos no desejado governo de unidade nacional. Além disso, Barzani não se manifestou entusiasta da proposta de Obama, lembrando a Kerry que “...hoje, estamos a enfrentar uma situação nova que nós, os curdos, devemos avaliar com muita cautela”. Na prática, a posição diplomática de Barzani refletia a decisão do governo regional curdo, que mandou ocupar militarmente a região petrolífera de Kirkuk, logo após o exército iraquiano se ter retirado em flagrante debandada.
Na realidade, o presidente do Curdistão, Massoud Barzani, apesar das dissimuladas afirmações do Secretário de Estado, John Kerry, sobre a necessidade de aumentar no imediato futuro o grau de autonomia dos curdos, não se manifestou disposto a apoiar a solução proposta por Obama, porque o atual momento de crise poderá contribuir para resolver os principais conflitos políticos que existem com o governo central de Bagdade. De fato, é bom lembrar que o primeiro-ministro Nuri al-Maliki, para silenciar as contínuas reivindicações sobre a ausência dos curdos na administração dos centros petrolíferos de Mossul e de Kirkuk e, em represália ao acordo que Barzani assinou com o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdoğan, para a construção de um gasoduto gerido exclusivamente por empresas turcas; e o governo regional curdo mandou cortar todos os financiamentos destinados à região autónoma do Curdistão, além de congelar os salários dos funcionários públicos que trabalham na região autónoma curda.
Consequentemente, a ocupação militar preventiva do centro petrolífero de Kirkuk por parte das forças curdas “Peshmerga”, na realidade, visa alcançar dois objetivos estratégicos: 1) dissuadir Abu Bakr al Baghdadi em ampliar as posições do EIIL, com uma possível continuação da ofensiva em direção às regiões ocidentais e meridionais do Curdistão; 2) impor ao atual primeiro-ministro iraquiano, ou ao futuro governo de unidade nacional, a condição de que as empresas petrolíferas da região de Kirkuk e de Mossul tenham uma administração maioritariamente curda, capaz de garantir ao governo da província autónoma do Curdistão uma justa percentagem de lucro com a venda ao exterior do petróleo e do gás extraídos em território curdo.
Ao mesmo tempo em que Kerry deixava o Curdistão, o vice-presidente dos EUA, Joe Biden, viajava para a Turquia e o Bahrein para pedir a intermediação do líder turco Erdogan e do rei Hamad bin Isa al-Khalifa, na tentativa de convencer o primeiro-ministro do Iraque a aceitar a solução da Casa Branca.
Apesar das pressões políticas de Obama, de Merkel e dos outros chefes de Estado árabes, e apesar do iminente ataque dos grupos armados do EIIL contra a capital Bagdade, o primeiro-ministro iraquiano, Nuri al-Maliki, diante dos microfones da TV nacional, declarou que “está fora de discussão a formação de um governo de emergência nacional com a participação dos partidos e de lideranças sunitas para tentar travar a ofensiva dos terroristas do EIIL, porque o exército nacional iraquiano está preparado para defender o país...”. Sublinhou ainda que “a formação de um governo de emergência nacional, antes de tudo, seria um golpe à nossa Constituição, além de representar uma flagrante negação do processo político que os eleitores iraquianos escolheram com vista à formação de um Estado de Direito no Iraque...”. Palavra que Nuri al-Maliki repetiu ao próprio John Kerry, dando, porém, a entender que algumas modificações políticas poderiam ser feitas no governo sem, porém, porem em causa a essência da coligação criada pelo partido islâmico Da’wa. Um cenário que permanece ainda indefinido, deixando o Iraque aberto a qualquer solução política ou até militar.
O projeto estratégico dos EUA em frangalhos
Os Estados Unidos gastaram quase cinco bilhões de dólares na “exportação da democracia” para o Iraque e o Afeganistão, chegando a monitorar a política dos novos governos eleitos após a derrubada dos Taliban e de Saddam Hussein. Duas operações militares de grande envergadura que induziram os “neocons”1 da Casa Branca a tentarem reformular, também, o contexto geopolítico do Médio Oriente.
Foi nesse âmbito que a invasão do Iraque, apesar das perdas e dos custos, foi sustentada durante dez anos para garantir ao Ocidente um regular abastecimento de petróleo e de gás. Um resultado que permitiu aos Estados Unidos começarem a efetivar o reajuste geoestratégico no Médio Oriente, com a transformação do Estado sionista de Israel numa superpotência regional e, em segundo lugar, com a implementação de uma série de planos subversivos que deveriam criar as condições políticas para a derrubada dos regimes de Kadafi e de Bashar al-Assad, na Líbia e na Síria, além de paralisar o Irã com as sanções econômicas e o isolamento diplomático.
Excluindo o processo de fortalecimento econômico e militar de Israel, o contexto geopolítico do Médio Oriente continua ainda mais confuso e complexo do que era antes, sobretudo por causa da distorção dos projetos subversivos que os aliados regionais (Arábia Saudita, Qatar e Emirados Unidos) realizaram para sufragar os seus próprios objetivos estratégicos. De fato, no caso da Líbia, os serviços secretos sauditas e qatarianos apoiaram e financiaram grupos e lideranças islâmicas fundamentalistas, exclusivamente para impor as regras do islamismo sunita, conhecido também como wahhabismo.
Regras que não se limitam à interpretação teológica do Alcorão. Pelo contrário, utilizam a “pureza do Islão” para influenciar, de forma peremptória, o futuro político, institucional e socioeconómico das sociedades governadas por partidos islâmicos, que, normalmente, rejeitam ou contestam as metodologias da democracia liberal ocidental.
O caos político e econômico que tomou conta da Líbia, após a derrubada de Kadafi, é, hoje, o caso mais evidente da vergonhosa atuação da Arábia Saudita e do Qatar, associada ao silêncio cúmplice e submisso da Casa Branca e das potências da OTAN para com as monarquias árabes.
Um silêncio que permaneceu também no caso da Síria e do Iraque, onde os agentes da monarquia saudita financiaram, armaram e monitorizaram os grupos armados jihadistas, permitindo que iniciassem uma confrontação fratricida contra o Exército Livre da Síria (ELS), oficialmente financiado e armado pelos EUA, a Grã-Bretanha e a França. Uma atitude que permitiu ao exército sírio retomar a histórica cidade de Homs e cercar definitivamente Aleppo, voltando a controlar a fronteira com o Líbano e a Jordânia, anteriormente sob controlo dos homens do ELS.
Foi, portanto, no sanguinário cenário beligerante da Síria que Abu Bakr al Baghdadi e os agentes do serviço secreto saudita planejaram a ofensiva do EIIL contra o governo de Bagdá. Uma operação militar de grande envergadura que nunca poderia ser realizada sem o apoio dos serviços de informações e, sobretudo, sem um pesado investimento da Arábia Saudita, com vista a realizar uma rápida ofensiva, deslocando da Síria mais de 20.000 combatentes, além de enviar clandestinamente outros 5.000 para se posicionarem nos arredores das cidades da periferia de Bagdá.
Por outro lado, é necessário lembrar que, sem a proteção política da Arábia Saudita, o líder do EIIL, Abu Bakr al Baghdadi, nunca teria quebrado a aliança com Abu Mohammed al-Golani, líder de Jabhat al-Nusra – a componente síria da Al Qaeda –, e nunca teria ousado rejeitar as ordens do chefe de Al Qaeda, Ayman Al Zawahir, segundo o qual o EIIL não devia assumir o controle das regiões orientais da Síria para criar um califado, unificando, apenas, a parte central da Síria com a do Iraque. Nesse contexto, resulta evidente que todos os beligerantes têm as costas muito bem protegidas: o xiita Nuri al-Maliki, mesmo sem os caças-bombardeiros dos EUA, já está a receber armas e assessoria militar do Irã, enquanto o sunita Abu Bakr al Baghdadi pode contar com o dinheiro e a sustentação política da Arábia Saudita e do Qatar e assim continuar a guerra até a dissolução do inimigo.
Tudo isto, somado ao silêncio da Casa Branca e dos países da OTAN para com a Arábia Saudita, indica claramente que os Estados Unidos já não controlam a política daquela monarquia, enquanto os serviços secretos do Rei Faisal atuam unilateralmente com o objetivo de quebrar o Irã e, consequentemente, o governo iraquiano liderado pelo xiita Nuri al-Maliki.
Assim, os responsáveis do partido islâmico iraquiano Da’wa, em particular o primeiro ministro Nuri al-Maliki, não têm a mínima confiança nos sunitas que, apesar de representarem apenas 35% da população iraquiana, durante o regime de Saddam Hussein monopolizavam a administração das empresas petrolíferas, o Banco Central, o funcionalismo público e, sobretudo, o exército. Por outro lado, a nova burguesia xiita, que se apoderou da receita petrolífera, está disposta a enfrentar os efeitos de uma sangrenta guerra civil antes de dividir com a burguesia sunita os altos lucros da venda do gás e do petróleo ao Ocidente, algo avaliado em quase cinco milhões de barris por dia.
Na realidade, a teimosia da Arábia Saudita para acirrar o confronto étnico-religioso entre sunitas e xiitas contribuiu para fazer implodir o projeto estratégico dos Estados Unidos no Iraque e, consequentemente, no Médio Oriente. Um projeto que os contribuintes dos Estados Unidos ainda estão a pagar.
Achille Lollo é jornalista italiano, correspondente do Brasil de Fato na Itália, editor do programa de TV “Quadrante Informativo” e colunista do Correio da Cidadania

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