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quarta-feira, 22 de julho de 2015

Srebrenica: 20 anos depois. Das comemorações às interpretações

A homenagem às vítimas de Srebrenica, o pleno respeito da sua memória impõe que não se atenue a condenação do que remete certamente para crimes de guerra e contra a humanidade, mas requer também que se lhe dê um sentido político. 

Por Catherine Samary

Memorial ao massacre de Srebrenica – Foto wikipedia
Toda a gesticulação diplomática que rodeia a comemoração do massacre de Srebrenica (esteja-se a favor ou contra a resolução proposta por Londres qualificando o massacre de genocídio), ignora a pergunta essencial: quais foram as causas e quem foram os responsáveis por estes crimes, no espaço e no terreno em que os conflitos se desenvolveram e no plano internacional em que foram “arranjados”? A homenagem às vítimas de Srebrenica, o pleno respeito da sua memória impõe que não se atenue a condenação do que remete certamente para crimes de guerra e contra a humanidade, mas requer também que se lhe dê um sentido político.
Nos dias 11-13 de julho de 1995, 8.000 jovens e homens muçulmanos bósnios foram separados das mulheres e dos filhos, depois assassinados e deitados em valas comuns. Esta realidade não é posta em questão nem em Moscou nem em Belgrado, cujos dirigentes estarão presentes nas comemorações. Estes crimes foram condenados pelo parlamento sérvio e, segundo uma recente sondagem, por 54% das pessoas inquiridas na Sérvia - ainda que 70% se neguem, tal como os seus dirigentes, a aceitar o qualificativo de genocídio. Uma tal rejeição é sem dúvida ainda mais radical no seio da República Srpska - a entidade sérvia da Bósnia onde se deu o massacre: aí é ainda provável que o dirigente político Radovan Karadzic assim como o comandante das forças armadas bósnio-sérvias, o general Ratko Mladic, que esperam em Haia o veredito da acusação de genocídio, continuem a ser ainda considerados como “heróis” - combatentes contra homens e jovens muçulmanos tratados como criminosos sanguinários.
Estaremos pois neste 11 de julho de 2015, bem longe de uma “verdade” comum e de uma clara denúncia das responsabilidades. Mas, que responsabilidades? contrariamente ao que dizem os comentários dominantes, não é o termo genocídio o teste de um real esclarecimento “dos factos”, sem omissão e a uma escala que permita a sua plena interpretação. O uso da “palavra” (genocídio) corre o risco neste caso de ocultar um sombrio bosque com dois componentes - o do desmembramento da antiga Jugoslávia em bases “étnicas” para apropriação dos seus territórios e propriedades, e o da realpolitik internacional na profundidade da assinatura dos acordos de Dayton, algumas semanas após o massacre de Srebrenica. Trata-se de estabelecer os laços evidentes entre este massacre e o conjunto das “condições” que permitiram à diplomacia norte-americana fazer assinar, algumas semanas mais tarde os acordos de Dayton proclamando uma Bósnia-Herzegovina “una” - e profundamente ferida e dividida -, “soberana” - e de facto sob protetorado internacional1.
Que “verdade”?
O Reino Unido apresentando na ONU uma resolução ardentemente apoiada pelos Estados Unidos (artífices dos acordos de Dayton) pretende, retomando o termo utilizado pelo Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (TPIY) para qualificar o massacre de Srebrenica, aparecer como garante da verdade. Mas está longe de se ter demonstrado que o TPIY - tributário do financiamento e das pressões políticas das grandes potências que o puseram de pé ad hoc - tenha podido ele próprio exercer algum tipo de poder de “verdade” sobre as responsabilidades internacionais de um drama assim; também não permitiu analisar como se integra nas guerras de “limpeza étnica” que assolaram a Bósnia-Herzegovina durante três anos, provocando cerca de 100.000 mortos (dos quais 70% muçulmanos, quando não são mais que 43% do conjunto da população) e várias centenas de milhares de refugiados e deslocados2.
A diplomacia norte-americana, por sua vez, explorou os impasses dos “planos de paz” inicialmente concebidos pelos governos europeus e pela ONU - planos sucessivamente fracassados pelo avanço prático, no terreno, das limpezas étnicas: dois Estados no Estado bósnio tendiam assim a ser forjados por ações que aterrorizavam as populações “indesejáveis”, por um lado a “República Srpska” (de dominante sérvia) e paralelamente (o que geralmente se omite) a Herzeg-Bosna (em torno de Mostar, de dominante croata). As milícias ultranacionalistas destes dois lados encontravam-se desde 1991 e cercavam Sarajevo, fazendo progredir os seus projetos paralelos nas costas das populações mais partidárias de uma Bósnia-Herzegovina multicomunitária, em particular os muçulmanos (chamados bósnios desde os anos 1990).
Uma das constantes dos falhanços das políticas da ONU e europeias foi que elaboravam pseudo “planos de paz” em contexto de guerras: as negociações não faziam mais que ratificar a progressão dos territórios controlados pelas milícias nacionalistas sérvias e croatas; mas nenhuma das potências europeias implicadas nesses planos, nem os Estados Unidos que permaneceram à margem até 1994-95, estavam dispostos a interpor-se contra as limpezas étnicas, e a perder nisso uma única vida. Era suposto que os capacetes azuis garantissem uma “paz” que não existia nos planos. Mas nas zonas de segurança deviam teoricamente proteger as populações. Se não o fizeram em Srebrenica é por que não tinham (já) o mandato para isso3.
Quando Richard Holbrooke tomou conta do “dossier”, uma espetacular (em sentido literal) viragem da NATO acabava de se produzir, explorando os impasses da ONU e da UE, os Estados Unidos aproveitaram o conflito bósnio para manter de pé a NATO e depois para a desenvolver - após 1991, apesar do final da guerra fria. Na prática, alguns “ataques seletivos” da NATO, sob mandato da ONU, contra as forças bósnio-sérvias, acompanharam a entrega de armas dos Estados Unidos ao exército croata: isto permitiu a Washington, sem implicar tropas americanas no solo, equilibrar a correlação de forças no terreno. Mas este dispositivo de conjunto permitiu também camuflar uma viragem pragmática: Slobodan Milosevic até então denunciado nos Estados Unidos como “servo-comunista” e “carniceiro dos Balcãs”, vai ser associado à negociação de Dayton, como o tinha sido por outro lado desde 1993 aos planos de paz europeus e da ONU na Croácia e depois na Bósnia. Holbrooke procurava uma “estabilização” de toda a região mediante um equilíbrio da correlação de forças e um compromisso sem derrota clara - os “princípios” e as vítimas humanas contaram pouco nestes cálculos. A cessação dos combates no terreno dependia da perceção sobre o que contribuía para o acordo negociado com os “dirigentes fortes” dos Estados vizinhos da região e o peso de uma negociação de carácter internacional.
Por trás dos acordos de Dayton, havia por tanto uma primeira precondição: o “mapa” do Estado da Bósnia-Herzegovina segundo a constituição elaborada pelos Estados Unidos devia ser visto como vantajoso pela cada um dos signatários, por tanto “aceitável” sem continuação da guerra, do ponto de vista dos protagonistas. Depois de três anos de limpezas étnicas sob direção das forças nacionalistas bósnio-sérvias, a “entidade” sérvia (chamada “República Srpska”) ia ser ratificada em Dayton sobre 49% da Bosnia-Herzegóvina -mas para que as armas “se calassem”, tinha que deixar as forças bósnio-sérvias suprimir o enclave “ingovernável” de Srebrenica (inclusive se um massacre assim era, sem dúvida, imprevisível, conduzindo a inculpar os dirigentes bósnio-sérvios desde os acordos de Dayton). Os restantes 51% aproximadamente iam ser atribuídos à “federação croato-muçulmana” (chamada a partir daqui “croato-bósnia”), segunda “entidade” criada pelos acordos de Dayton. Ia, sob pressão norte-americana, conter o separatismo da Herzeg-Bósnia (onde as milícias nacionalistas croatas tinham destruído em particular os bairros muçulmanos de Mostar) mediante uma aliança frágil e forçada “antisérvios” no seio desta “federação”.
Dito de outra forma, em Dayton, as milícias e dirigentes nacionalistas bósnio-sérvios e bósnio-croatas, os mais “separatistas”, foram afastados a fim de manter a ficção de um Estado unificado; mas era preciso levar as populações a aceitar como “representando” respetivamente os seus interesses, Slobodan Milosevic (dirigente da Sérvia) e Franjo Tudjman (chefe do estado croata), face a Aljia Izetbegovic no poder em Sarajevo. Os três assinaram os acordos de Dayton por razões evidentemente opostas: Izetbegovic aceitou-as porque mantinham uma Bósnia-Herzegovina supostamente soberana e indivisível da qual ele ia poder ser oficialmente presidente; enquanto os dirigentes de Belgrado e Zagreb se punham de acordo, como o tinham feito desde o começo dos anos 1990: tratava-se então de uma partilha étnica desta mesma Bósnia, defendida de forma mais radical no terreno por forças nacionalistas bósnias sérvias e croatas.
A partir daí os acordos incluíam uma constituição da Bósnia-Herzegovina, que permitia a Belgrado e Zagreb fortes laços com as “entidades” definidas em bases étnicas. As forças bósnio-sérvias e bósnio-croatas aceitaram por tanto estar representadas pelos dirigentes dos Estados vizinhos, pois tinham ido o mais longe possível pela força das armas, e os seus “avanços” eram em grande parte reconhecidos pela nova constituição de Dayton. A esperança das correntes separatistas era também que o tempo deixaria a porta aberta a uma explosão posterior da Bósnia. Quanto a Milosevic e Tudjman, a sua “moderação “ -em comparação com os ultranacionalistas no terreno- valia-lhes um reconhecimento internacional (com o enfraquecimento das sanções contra Belgrado) e sobretudo, convertiam-se em donos “na sua casa” para gerir o destino da sua “minoria” respetiva: o silêncio sobre o conflitos no Kosovo em Dayton ia a par com outro silêncio, sobre a limpeza étnica de várias centenas de milhares de sérvios da Krajina croata, na sombra de Srebrenica e sob o silêncio dos diplomatas e dos média internacionais.
Por outras palavras, não se pode compreender o massacre de Srebrenica nem isolando-o do sentido geral das guerras de limpeza étnica que devastaram a Bósnia, nem ignorando o impacto da “real-politik” de Dayton sobre os “mapas” desenhados por limpezas étnicas. Ao mesmo tempo, há que medir a violência particular que lá sofreram as populações muçulmanas: a agressão infligida pelas duas partes ao mesmo tempo e a fragilidade particular da “nação muçulmana” bósnia têm que ver com isto, inclusive no sentimento de conivência internacional que pôde galvanizar os agressores.
Isto não tem impedido, no entanto (sem dúvida, tem sido ao contrário) esta população de ser a mais massivamente defensora de um Estado que afirmava ao mesmo tempo uma cidadania universal (independente das culturas, das línguas e das religiões) seja jugoslava ou bósnia, e a diversidade das histórias que forjam identidades “nacionais” evolutivas e com frequência cruzadas. Há também que lhe prestar homenagem por isto.
Artigo de Catherine Samarydisponível no site Europe Solidaire sans frontières. Tradução deFaustino Eguberri para espanhol para Viento Sur. Tradução para português de Carlos Santos para esquerda.net

1 Não é verdade, ao contrário do que diz o Guardian (How Britain and the US decided to abandon Srebrenica, http://www.theguardian.com/world/2015/jul/04/how-britain-and-us-abandoned-srebrenica-massacre-1995), que seria preciso esperar 20 anos para conhecer e analisar as condições prévias a Dayton: pode-se ler nos artigos sobre este tema escritos para o Le Monde Diplomatique, mas também, o escrito por ocasião da morte de Slobodan Milosevic, no texto “De la disparition dans le sang de la Yougoslavie” (2006), que trata em particular a aliança Milosevic-Tudjman sobre a partilha étnica da Bósnia-Herzegóvina e as “evoluções da política internacional” em particular nos acordos de Dayton. (Ler o artigo completo em ESSF (article 13577):http://www.europe-solidaire.org/spip.php?article13577). Curiosamente, The Guardian não inclui Franjo Tudjman entre os principais actores de Dayton e ao fazer isto omite a limpeza étnica de várias centenas de milhares de sérvios de Krajina, como uma das precondições de Dayton.
2 Para uma análise destas guerras, contra diversas interpretações etnicistas ou religiosas, ler o texto da conferência de dezembro de 2014: “Interprétations profanes: Le religieux dans la crise yougoslave des années 90”. http://www.europe-solidaire.org/spip.php?article33860
3 Ver o artigo de The Guardian indicado na nota 1.

Sobre o/a autor(a)

Investigadora e professora na universidade Paris-Dauphine (aposentada).

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