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sábado, 31 de outubro de 2015

Eduardo Cunha, a bancada BBB e a ideologia anti-neomalthusiana


Artigo de José Eustáquio Diniz Alves

“Só amanhece o dia para o qual estamos acordados”
(Henry Thoreau, do livro Walden)

151030

Diante da fraqueza do governo federal e da crise no seio das forças políticas de esquerda, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e a bancada BBB (Boi, Bala e Bíblia) aproveitam para avançar com uma pauta conservadora, num ritmo como nunca se viu antes na história deste país. Acuado por inúmeras denúncias de corrupção e a possibilidade de cassação, o presidente da Câmara corre contra o tempo para deixar consolidada na legislação brasileira sua pegada regressiva e tradicionalista, o que terá impacto na economia, na sociedade e no meio ambiente.
Num país que tem mais de 150 mil mortes por ano por causas externas (Alves e Manetta, 2014), a comissão especial que analisava mudanças no Estatuto do Desarmamento, aprovou o Projeto de Lei 3722, de 2007, que busca estender o direito ao porte de arma a diversas categorias, incluindo parlamentares, fazendeiros, caminhoneiros, taxistas, etc. Na prática, o Projeto acaba com o Estatuto do Desarmamento. Como mostrou Bedinelli (2015): “A se tomar como base o que aconteceu com a redução da maioridade penal, aprovada em agosto deste ano, a aprovação deverá ocorrer sem maiores problemas. Se passar, a lei ainda segue para o Senado”.
Num país que promoveu o genocídio das populações indígenas e onde os europeus (especialmente portugueses guiados pela Cruz de Malta) ocuparam as terras dos povos que chegaram anteriormente no continente, a PEC 215, pretende transferir do Executivo para o Congresso o poder de demarcar terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação. Os parlamentares não querem aprimorar a Constituição, mas dar um golpe nela. Como escreveu Eliane Brum (2015): “Falta espaço para a produção de alimentos no país? Tudo indica que não. Num país com essa quantidade de terras destinada à agropecuária e com essa concentração de terras na mão de poucos, afirmar que o problema do desenvolvimento são os povos indígenas só não é mais ridículo do que Kátia Abreu, a latifundiária que diz não existir mais latifúndio no Brasil e hoje ministra da Agricultura, afirmar que ‘o problema é que os índios saíram da floresta e passaram a descer na área de produção’. Os índios, esses invasores do mundo alheio. Mas é assim que a história vai sendo distorcida ao ser contada para a população”.
Num país em que a familia patriarcal, de perfil melancólico, pode ser caracterizada na seguinte frase de Paulo Prado: “Pai soturno, mulher submissa, filhos aterrados”, os parlamentares, liderados pela bancada BBB, aprovaram em comissão especial da Câmara, o texto que define como família apenas o núcleo formado a partir da união entre um homem e uma mulher. A Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil manifestou-se contra o Estatuto da Família (PL 6.583/2013): “A referida definição, ao excluir do conceito de família as uniões homoafetivas, é discriminatória, excludente e homofóbica e, via de consequência, escancaradamente inconstitucional. Trata-se de uma manobra política na vã tentativa de afrontar as decisões judiciais que incluíram no âmbito da tutela jurídica as famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo”.
Num país em que o número de gravidez indesejada é muito alto, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou, dia 21/10, o Projeto de Lei 5.069/13, do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que modifica a Lei de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (Lei 12.845/13) e acrescenta o art. 127-A no Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), regulando o atendimento às mulheres que foram vítimas de estupro. Ou seja, resgatando as políticas pronatalistas da era do Estado Novo de Vargas, parlamentares da atual legislatura discutem se o profissional de saúde deve ou não dar informações à vítima sobre seu direito ao aborto, e se a mulher deve ou não ser obrigada a fazer um exame de corpo de delito. A CCJ decidiu manter o direito à informação, mas introduziu a obrigatoriedade de registro de ocorrência e exame de corpo de delito.
Na justificativa do Projeto de Lei 5.069/13, o deputado Cunha alega que: “A legalização do aborto vem sendo imposta a todo o mundo por organizações internacionais inspiradas por uma ideologia neo-maltusiana de controle populacional, e financiadas por fundações norte-americanas ligadas a interesses super-capitalistas”.
Esta argumentação descabida e intempestiva, infelizmente, encontra guarida na mitologia de que a redução das taxas de fecundidade dos países não desenvolvidos é fruto do maquiavelismo dos ricos que querem “reduzir o número de pobres ao invés de acabar com a pobreza” ou desejam “diminuir o número de comensais e não aumentar o banquete”. Também a ideologia positivista e desenvolvimentista (“governar é povoar”) considera que a grandeza de um país depende do tamanho expressivo da população. Na ideologia dos governos militares o lema era: “levar os homens sem terra para as terras sem homens”, com um claro desprezo às áreas anecúmenas.
Porém, é impossível manter um crescimento demoeconômico ilimitado em um planeta finito. Na verdade a redução do número médio de filhos por mulher é um dos componentes fundamentais da transição demográfica, que por sua vez, é uma condição essencial para o desenvolvimento humano e o progresso civilizatório. As taxas de mortalidade infantil diminuíram muito no Brasil e, aumentando a sobrevivência das crianças, as mulheres deixam de passar todo o período reprodutivo tendo filhos.
Adicionalmente, os avanços na educação, na saúde e na inserção feminina no mercado de trabalho tornou desfuncional o tamanho excessivo da prole. A redução dos óbitos e dos nascimentos, em geral, cria uma situação favorável conhecida como “bônus demográfico”. Todo país que venceu a miséria e as condições abjetas de vida experimentou o aumento da esperança de vida e a redução do tamanho das famílias. E para tanto, foi fundamental o empoderamento das mulheres.
Como já dizia o socialista francês Charles Fourier, em 1808, a emancipação da sociedade depende da emancipação feminina. Na mesma linha, a feminista e anarquista brasileira, Maria Lacerda de Moura (1887-1945) receitava: “Amem-se mais uns aos outros e não se multipliquem tanto”. Foram estas ideias progressistas que delinearam a concepção dos direitos sexuais e reprodutivos. O acesso à saúde reprodutiva é, portanto, um direito humano fundamental e não é recomendável manter uma gravidez indesejada por meio de uma gestação forçada.
De fato, as mulheres não podem ser fantoches dos interesses capitalistas e imperialistas. Muito menos devem ser marionetes dos interesses pronatalistas da ideologia tradicionalista e patriarcal. A bancada BBB (Boi, Bala e Bíblia) representa o que há de pior no país em termos econômicos, sociais e ambientais. Seus integrantes são contra os direitos sexuais e reprodutivos e a autonomia feminina. Em nome de combater o neomalthusianismo, a bancada BBB defende uma política pró-natalista antropocêntrica, conservadora e ecocida.
Referências:
ALVES, JED. MANETTA, A. 152.013 mortes violentas em 2012 e a redução da razão de sexo no Brasil, Ecodebate, RJ, 27/06/2014
BRUM, Eliane. Os índios e o golpe na Constituição. São Paulo, El pais, 13/04/2015
MARTINEZ-ALIER, Joan, MASJUAN, Eduard. Neo-Malthusianism Iin the Early 20th Century, Universitat Autònoma de Barcelona, International Society for Ecological Economics, Montréal 11-15 July 2004

José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br

in EcoDebate, 30/10/2015

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