Ao depor no Supremo Tribunal Federal no âmbito da ação penal que investiga a tentativa de subversão da ordem democrática nas eleições de 2022, Jair Bolsonaro recorreu novamente à expressão “dentro das quatro linhas da Constituição”. A fórmula, repetida como um mantra ao longo de seu governo, serviu mais para disfarçar intenções autoritárias do que para reafirmar qualquer compromisso com a legalidade republicana. A ironia da cena reside em seu paralelo histórico mais evidente: o golpe de 1964.
O golpe civil-militar que depôs o presidente João Goulart não se consumou num ato abrupto, mas foi cuidadosamente envolvido em roupagens de legalidade formal. As tropas se movimentaram; o Congresso Nacional, sob pressão, declarou vaga a Presidência da República, alegando que Jango havia abandonado o cargo. A justificativa jurídica era frágil — ou, como reconhece a melhor historiografia, meramente decorativa — mas permitiu à elite política e militar simular uma transição dentro da aparência da ordem constitucional de 1946.
A presidência foi então ocupada de forma indireta, por meio de uma eleição realizada no Congresso. Três nomes disputaram a vaga: Juarez Távora, Eurico Gaspar Dutra e Humberto de Alencar Castelo Branco. Este último, chefe do Estado-Maior do Exército e figura central na articulação do golpe, foi o escolhido. Mas mesmo ele não se instalou de imediato na cadeira presidencial. Seguiu-se, com meticulosa pretensão de normalidade, o rito legislativo necessário para conferir uma aura de legitimidade ao novo regime. Era a institucionalização da ruptura, feita pelas vias da simulação constitucional.
Castelo Branco prometeu inicialmente devolver o poder aos civis na data estabelecida pela Constituição de 1946: 31 de janeiro de 1966. Tratava-se, no entanto, de uma promessa encenada. Ainda em 1964, o ex-presidente Juscelino Kubitschek — então pré-candidato à sucessão presidencial e senador da República — teve seu mandato cassado e os direitos políticos suspensos por dez anos. Curiosamente, JK havia apoiado a conspiração inicial contra João Goulart, acreditando que o movimento se limitaria a uma correção de rumo institucional e à realização de eleições regulares. Imaginava-se que Castelo apenas completaria o restante do mandato iniciado em 1960. O desengano viria pouco depois. Em 1968, já sob o governo Costa e Silva, o próprio Carlos Lacerda — líder da União Democrática Nacional (UDN), símbolo da direita civil e um dos principais entusiastas do golpe — teve igualmente seus direitos políticos cassados. A Constituição de 1946, mutilada por sucessivos Atos Institucionais, foi enfim revogada na prática. Castelo Branco prorrogou seu próprio mandato e inaugurou uma nova ordem autoritária, legitimada sob o discurso da “segurança nacional”, que serviria como fundamento do regime de exceção nos anos seguintes.
O paralelo com Bolsonaro não está apenas na retórica. Em ambos os casos, a ideia de legalidade foi mobilizada para justificar uma ruptura com os princípios constitucionais. Em 1964, invocou-se a Constituição para legitimar um golpe. Em 2022, invocaram-se “as quatro linhas” para desmoralizar o voto popular e abrir caminho a uma tentativa de insurreição institucional.
O que se vê, portanto, é a continuidade de um padrão histórico brasileiro: a Constituição como ornamento, manipulada para legitimar o arbítrio. A farsa democrática de 1964 encontra seu eco na retórica ambígua de Bolsonaro — um novo ensaio autoritário travestido de respeito à lei, cujo fracasso revelou, mais uma vez, os limites e as fragilidades do nosso pacto democrático.



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