Por que precisamos olhar para história, psique e cérebro para entender nossos desafios coletivos
Costuma-se dizer que o brasileiro “não gosta de seguir regras”, que “faz tudo do jeito errado” e que “o país não vai para frente porque o povo não presta”. Essa explicação simplista, repetida de geração em geração, serve mais para alimentar o desânimo do que para oferecer soluções. Modernamente, a ciência nos mostra que o ser humano é um animal bio-psico-social. Biologicamente e psicologicamente, não há nada que diferencie brasileiros de alemães, japoneses ou americanos. Se o comportamento coletivo é diferente, o problema não está na natureza das pessoas, mas no meio social e institucional que molda suas escolhas.
A sociologia já nos ensinou que sociedades não se constroem no vazio. No clássico A Cidadania no Brasil: o longo caminho, o historiador José Murilo de Carvalho demonstra como a cidadania brasileira foi formada de maneira tardia e invertida. Primeiro vieram os direitos sociais (como aposentadoria e educação pública), depois os direitos políticos (como o voto), e só por último, de forma parcial, os direitos civis (como o acesso efetivo à justiça e à segurança). Essa inversão histórica criou um terreno fértil para clientelismo, curral eleitoral e relações políticas mediadas pelo favor. Nesse ambiente, obedecer a normas gerais parece menos vantajoso do que manter uma boa relação com quem distribui privilégios.
A psicanálise também oferece pistas para compreender o fenômeno. O superego — a instância psíquica que regula o cumprimento de regras — é formado a partir da família, da escola e das instituições simbólicas. Quando essas instâncias falham ou são frágeis, a internalização da norma se enfraquece. O famoso “jeitinho brasileiro” pode ser visto como um mecanismo de adaptação: uma forma criativa de resolver problemas em contextos onde seguir a lei não garante justiça ou eficácia. Mas, quando generalizado, ele se transforma em corrosão da confiança coletiva.
A neurociência, por sua vez, tem mostrado como a escassez — de tempo, dinheiro e recursos cognitivos — altera a tomada de decisão. Pesquisas indicam que viver em constante estado de insegurança financeira consome energia mental e reduz a capacidade de planejamento de longo prazo. É como se o cérebro estivesse sempre no “modo sobrevivência”, priorizando recompensas imediatas em detrimento de escolhas mais racionais. Isso ajuda a explicar por que muitas famílias se endividam para consumir bens ou experiências momentâneas, mesmo que isso comprometa o futuro.
Esses três níveis de análise — histórico, psíquico e neurológico — se retroalimentam. Instituições frágeis incentivam soluções pessoais; soluções pessoais perpetuam a informalidade; e a informalidade reforça a descrença nas instituições. O resultado é um ciclo difícil de romper, em que cada indivíduo sente que cumprir as regras sozinho é inútil, já que “ninguém cumpre”.
Romper esse ciclo exige mais do que slogans moralistas. É preciso fortalecer instituições para que sejam previsíveis e imparciais, reduzir a desigualdade que gera escassez cognitiva e apostar em educação cívica de qualidade, que ensine não só matemática e português, mas também responsabilidade coletiva, ética pública e cuidado com o bem comum. Também é preciso criar referências culturais positivas — mostrar que pagar impostos, preservar espaços públicos e respeitar contratos são práticas de cidadania, e não ingenuidade.
Não se trata de culpar o povo ou absolvê-lo de responsabilidades. Trata-se de entender que os comportamentos sociais são moldados por um ecossistema de incentivos, traumas e aprendizados. Se queremos um Brasil mais justo, precisamos transformar esse ecossistema. O “jeitinho” pode continuar sendo nossa marca de criatividade, mas precisa deixar de ser o atalho que justifica a erosão das regras que nos permitem conviver em sociedade.
A boa notícia é que mudanças são possíveis. Países que hoje são exemplo de civismo e eficiência também tiveram fases de clientelismo e informalidade — da Itália do pós-guerra aos Estados Unidos da Lei Seca. O que fez a diferença foi a combinação de reformas institucionais, mobilização social e narrativas que reforçaram a confiança coletiva.
O caminho é longo, como alertou José Murilo de Carvalho, mas não é impossível. A pergunta correta não é se o povo “presta” ou não. É: como criamos condições para que as pessoas tenham incentivos, segurança e desejo de fazer o que é certo — não porque temem punição, mas porque confiam que todos, inclusive o Estado, farão o mesmo.



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