Chomsky: O que é o bem comum? - Blog A CRÍTICA

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terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Chomsky: O que é o bem comum?

Os humanos são seres sociais, e o tipo de criatura que uma pessoa se torna depende essencialmente das circunstâncias sociais, culturais e institucionais de sua vida.

Somos, portanto, levados a investigar os arranjos sociais que conduzem aos direitos e ao bem-estar das pessoas, e à realização de suas justas aspirações - em suma, o bem comum.

Como perspectiva, eu gostaria de invocar o que me parecem truísmos virtuais. Eles se relacionam a uma categoria interessante de princípios éticos: os que são não apenas universais, na medida em que são virtualmente sempre professados, mas também duplamente universais, porque ao mesmo tempo são quase universalmente rejeitados na prática.

Estes variam desde princípios muito gerais, como o truísmo de que devemos aplicar a nós os mesmos critérios que aplicamos aos outros (senão mais rigorosos), até doutrinas mais específicas, como a dedicação a promover a democracia e os direitos humanos, que é proclamada quase de maneira universal, mesmo pelos piores monstros - embora o registro atual seja sombrio, em todo o espectro.

Um bom lugar para começar é com o clássico "Sobre a Liberdade", de John Stuart Mill. Sua epígrafe formula "o grande princípio condutor para o qual convergem diretamente todos os argumentos desdobrados nestas páginas: a absoluta e essencial importância do desenvolvimento humano em sua mais rica diversidade".

As palavras citadas são de Wilhelm von Humboldt, um dos fundadores do liberalismo clássico. Segue-se que as instituições que restringem esse desenvolvimento são ilegítimas, a menos que possam de alguma forma justificar-se.

A preocupação pelo bem comum deveria nos impelir a encontrar maneiras de cultivar o desenvolvimento humano em sua mais rica diversidade.

Adam Smith, outro pensador do iluminismo com ideias semelhantes, acreditava que não deveria ser muito difícil instituir políticas humanísticas. Em sua "Teoria dos Sentimentos Morais", ele observou que "por mais egoísta que um homem supostamente seja, há evidentemente alguns princípios em sua natureza que lhe interessam na fortuna dos outros e lhe fazem necessária a felicidade destes, embora não extraia nada disso exceto o prazer de vê-la".

Smith reconhece o poder do que chama de "máxima vil dos senhores da humanidade": "Tudo para nós e nada para os outros". Mas as "paixões originais da natureza humana", mais benignas, poderiam compensar essa patologia.

O liberalismo clássico naufragou nos recifes do capitalismo, mas seus compromissos e aspirações humanísticos não morreram. Rudolf Rocker, um pensador e ativista anarquista do século 20, reiterou ideias semelhantes.

Rocker descreveu o que chama de "tendência clara no desenvolvimento histórico da humanidade" que busca o "livre e desimpedido desdobramento de todas as forças sociais e individuais na vida".

Rocker delineava uma tradição anarquista que culminou no anarcossindicalismo - em termos europeus, uma variedade do "socialismo libertário".

Esse tipo de socialismo, afirmou ele, não retrata "um sistema social fixo, auto-encerrado", com uma resposta definitiva para todas as multifacetadas questões e problemas da vida humana, mas sim uma tendência no desenvolvimento humano que busca atingir os ideais iluministas.

Assim compreendido, o anarquismo faz parte de um leque maior de pensamento e ação socialistas libertários que inclui as conquistas práticas da Espanha revolucionária em 1936; vai além, para empresas de propriedade dos trabalhadores que se espalham hoje no cinturão do ferro americano, no norte do México, no Egito e em muitos outros países, mais extensamente no País Basco na Espanha; e abrange os muitos movimentos cooperativistas em todo o mundo e boa parte das iniciativas de direitos humanos feministas e civis.

Essa ampla tendência no desenvolvimento humano busca identificar estruturas de hierarquia, autoridade e dominação que restringem o desenvolvimento humano, e então submetê-las a um desafio muito razoável: justificar-se.

Se essas estruturas não vencerem o desafio, devem ser desmanteladas - e, acreditam os anarquistas, "remodeladas a partir de baixo", como observa o comentarista Nathan Schneider.

Isto soa em parte como um truísmo: por que alguém defenderia estruturas e instituições ilegítimas? Mas os truísmos pelo menos têm o mérito de ser verdades, o que os distingue de uma grande parte do discurso político. E acredito que eles fornecem passos úteis para se encontrar o bem comum.

Para Rocker, "o problema que se coloca para nosso tempo é o de libertar o homem da maldição da exploração econômica e da escravidão política e social".

Deve-se notar que o tipo de libertarismo americano difere acentuadamente da tradição libertária, aceitando e de fato defendendo a subordinação dos trabalhadores aos senhores da economia, e a submissão de todos à disciplina restritiva e às características destrutivas dos mercados.

O anarquismo se opõe famosamente ao Estado, enquanto defende a "administração planejada das coisas no interesse da comunidade", nas palavras de Rocker; e, indo além, federações abrangentes de comunidades e locais de trabalho autogovernados.

Hoje os anarquistas dedicados a esses objetivos muitas vezes aprovam o poder do Estado para proteger as pessoas, a sociedade e a própria terra da destruição do capital privado concentrado. Isso não é uma contradição. As pessoas vivem, sofrem e resistem na sociedade existente. Os meios disponíveis devem ser usados para protegê-las e beneficiá-las, mesmo que um objetivo de longo prazo seja construir alternativas preferíveis.

No movimento dos trabalhadores rurais do Brasil, fala-se em "ampliar os pisos da jaula" - a jaula das instituições coercitivas existentes que podem ser ampliadas pela luta popular -, como aconteceu efetivamente ao longo de muitos anos.

Podemos ampliar a imagem para pensar na jaula das instituições estatais como uma proteção das feras selvagens que vagam lá fora: as instituições capitalistas predadoras e apoiadas pelo Estado, dedicadas em princípio ao lucro, poder e dominação privados, com o interesse da comunidade e do povo no máximo como uma nota de rodapé, reverenciado na retórica mas negligenciado na prática como uma questão de princípio e até de lei.

Grande parte do trabalho mais respeitado na ciência política acadêmica compara as atitudes públicas com a política do governo. Em "Affluence and Influence: Economic Inequality and Political Power in America" [Afluência e influência: desigualdade econômica e poder político nos EUA], o acadêmico de Princeton Martin Gilens revela que a maioria da população americana está efetivamente despossuída.

Cerca de 70% da população, na extremidade inferior da escala de riqueza/renda, não têm influência na política, conclui Gilens. Subindo na escala, a influência diminui lentamente. No topo estão aqueles que praticamente determinam a política, por meios que não são obscuros. O sistema resultante não é democracia, mas plutocracia.

Ou talvez, um pouco mais gentilmente, seja o que o acadêmico jurídico Conor Gearty chama de "neo-democracia", um parceiro do neoliberalismo - sistema em que a liberdade é desfrutada por poucos e a segurança em seu sentido mais amplo só é disponível para a elite, mas dentro de um sistema de direitos formais mais geral.

Em comparação, como escreve Rocker, um sistema realmente democrático alcançaria o caráter de "uma aliança de grupos livres de homens e mulheres baseada no trabalho cooperativo e uma administração planejada das coisas no interesse da comunidade".

Ninguém considera o filósofo americano John Dewey um anarquista. Mas veja suas ideias. Ele reconheceu que "o poder hoje reside no controle dos meios de produção, troca, publicidade, transporte e comunicação. Quem os possuir domina a vida do país", mesmo que permaneçam formas democráticas. Até que essas instituições estejam nas mãos do público, a política continuará sendo "a sombra projetada na sociedade pelas grandes empresas", como se vê geralmente hoje.

Essas ideias levam muito naturalmente a uma visão da sociedade baseada no controle das instituições produtivas pelos trabalhadores, como imaginavam os pensadores do século 19, notadamente Karl Marx, mas também - menos conhecido - John Stuart Mill.

Mill escreveu: "A forma de associação, entretanto, que, caso a humanidade continue melhorando, se deve esperar que predomine, é a associação dos próprios trabalhadores em termos de igualdade, possuindo de forma coletiva o capital com que realizam suas operações e trabalhando sob gerentes elegíveis e removíveis por eles mesmos".

Os Pais Fundadores dos EUA estavam conscientes dos perigos da democracia. Nos debates da Convenção Constitucional, o principal redator, James Madison, advertiu sobre esses riscos.

Naturalmente tomando a Inglaterra como modelo, Madison observou que "na Inglaterra hoje, se as eleições fossem abertas a todas as classes de pessoas, a propriedade dos proprietários de terras ficaria insegura. Uma lei agrária logo teria lugar", solapando o direito à propriedade.

O problema básico que Madison previu em "enquadrar um sistema que desejamos que dure eras" era garantir que os governantes de fato fossem a minoria rica, de modo a "garantir os direitos da propriedade contra o perigo de uma igualdade e universalidade de sufrágio, investindo o completo poder da propriedade em mãos que não têm participação nela".

A academia geralmente concorda com a avaliação do estudioso Gordon S. Wood, da Universidade Brown, de que "a Constituição foi intrinsecamente um documento aristocrático destinado a conter as tendências democráticas da época".

Muito antes de Madison, Aristóteles, em sua "Política", reconheceu o mesmo problema na democracia.

Revendo uma variedade de sistemas políticos, Aristóteles concluiu que esse sistema era a melhor forma de governo - ou talvez a menos ruim. Mas ele reconheceu um defeito: a grande massa dos pobres poderia usar seu poder de voto para tirar a propriedade dos ricos, o que seria injusto.

Madison e Aristóteles chegaram a soluções opostas: Aristóteles aconselhou a reduzir a desigualdade, com o que consideraríamos medidas do Estado do bem-estar. Madison achava que a resposta era reduzir a democracia.

Em seus últimos anos, Thomas Jefferson, o homem que escreveu a Declaração de Independência dos EUA, captou a natureza essencial do conflito, que estava longe de terminar. Jefferson tinha sérias preocupações sobre a qualidade e o destino da experiência democrática. Ele distinguia entre "aristocratas e democratas".

Os aristocratas são "aqueles que temem e desconfiam do povo, e desejam atrair todos os poderes deles para as mãos das classes superiores".

Os democratas, em comparação, "identificam-se com o povo, têm confiança nele, o apreciam e consideram como os mais honestos e seguros, embora não os mais sábios, depositários do interesse público".

Hoje os sucessores dos "aristocratas" de Jefferson poderiam discutir sobre quem deve exercer o papel de condutor: intelectuais tecnocratas e voltados para políticas, ou banqueiros e executivos de empresas.

É essa custódia política que a genuína tradição libertária deseja desmontar e construir a partir de baixo, enquanto também muda a indústria, como coloca Dewey, "de uma ordem social feudal para outra democrática", baseada no controle dos trabalhadores, respeitando a dignidade do produtor como verdadeira pessoa, e não uma ferramenta nas mãos dos outros.

Como a velha toupeira de Karl Marx - "nossa velha amiga, nossa velha toupeira, que sabe tão bem trabalhar no subsolo, e depois subitamente emergir" -, a tradição libertária sempre está escavando perto da superfície, sempre pronta a espiar, às vezes de maneiras surpreendentes e inesperadas, buscando produzir o que me parece uma aproximação razoável do bem comum.

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