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quarta-feira, 8 de abril de 2015

O número singular da morte

Quando o grupo islâmico Al-Shabab ataca a Universidade de Garissa no Quénia matando 148 pessoas (maioritariamente estudantes cristãos), ninguém vestiu uma camisola ou t-shirt. Há casos em que a morte, singular ou colectiva, um, dezenas ou centenas, não passa mesmo de um número.

Miguel Guedes

A dimensão e repercussão da morte é fenômeno que corre paralelamente à celebração da vida, ela mesma a inevitável antecipação de um fim. A forma como encaramos, prezamos ou homenageamos quem parte faz ligação direta à razão pela qual vemos a vida passar ou deixamos a vida acontecer. A mediatização da morte exige como que um velório, algum acanhamento, sopesar, o encontro de um bom timbre para o elogio e a deixa, para a descrição e respeito pelo sofrimento de terceiros. Fúnebre será sempre a morte que abraça o histerismo num pequeno golpe de asa, manchetes afiadas e bicos de pé para o desfile ou parada. Quando alguém parte morrendo, esse número é singular, único e atado à vida. Mas a denúncia da morte, apesar da singularidade de cada um dos que partem, ganha premência e necessidade absoluta quando estamos perante um massacre.

Todos nos deslocamos para a denúncia da morte, cabeça erguida e consternação embebida em fúria no momento em que os irmãos Said e Chérif Kouachi mataram mais de uma dezena de pessoas no ataque ao jornal "Charlie Hebdo", em Paris, a 7 de Janeiro. Nessa altura, quase todos fomos e "Somos Charlie", obviamente, imperativo categórico. Mas quando o grupo islâmico Al-Shabab, na quinta-feira passada, ataca a Universidade de Garissa no Quênia matando 148 pessoas (majoritariamente estudantes cristãos), ninguém vestiu uma camisola ou t-shirt. Não é um instante na luta entre os maus e os bons, como num mundo a preto e branco. Há casos em que a morte, singular ou coletiva, um, dezenas ou centenas, não passa mesmo de um número. No caso do massacre desta semana, um número de rodapé. Há casos, como este, em que nem o mais fervoroso dos crentes pode admitir que a morte seja só uma breve passagem. África minha, só em filme.

Três dias após o atentado, as autoridades revelam que um dos quatro criminosos era um simples vizinho. Filho de um funcionário do Governo de Garissa, região Este do Quênia com olhos na fronteira somali, era dado como desaparecido há tempo incerto. O aviso foi claro e gritado: mais atentados acontecerão enquanto o Governo queniano não retirar as tropas acantonadas na Somália. E assim sucede, perante a débil inexistência mediática em agenda e perante os nossos olhos semicerrados, o maior ataque terrorista no Quênia desde o atentado perpetrado contra a embaixada dos Estados Unidos em Nairobi em 1988, onde a singularidade coletiva da morte também teve o seu número gordo para as estatísticas (213 mortos).

Aconteça o que acontecer no "terceiro mundo", tanto no passado como agora, nunca assistiremos à marcha de líderes mundiais pelas ruas de uma cidade, braço dado em comunhão de bens e valores. O mundo não pára no mundo "civilizado" perante a agonia extramuros. Extramundo, quase. Os fatos são praticamente incontáveis e basta atentar no que se passa no Norte da Nigéria com a carnificina do Boko Haram para mantermos a certeza de que há vários e muitos mundos na comunidade internacional. É a hipocrisia e a falta de atenção, a falta de meios de cobertura e o deficiente acesso à informação, o desinteresse e o esquecimento pelo que está longe da vista ainda que à nossa porta. É simplesmente o que sempre foi: é na morte (e sobretudo na morte) que desenhamos a existência de um primeiro e de um terceiro mundo.

As imagens do massacre em Garissa são de uma brutalidade sem nome. Mas há um nome de miúda, Cynthia, que escapou à morte agarrada a um escombro durante dois dias, escondida num medo que os seus 19 anos não permitiram que a paralisasse, à espera. No dia 2 de Abril, Cynthia escapou à singularidade da morte, agora ícone de esperança para quem a quiser sentir ainda viva. No dia 2 de Abril, o Mestre Manoel de Oliveira morre no Porto com a sua vida e obra eternizada para o mundo. Não foi um dia anônimo, pelos nomes. Manoel de Oliveira fintou Cynthia nesse dia. Porque se a visse ou se a filmasse, encontraria nela o que sempre vimos no melhor da sua obra: a dimensão humana em esplendor, no tempo cortado da respiração, entre o sublime e o terror da alma dos homens. Cada um deles, em circunstâncias diametralmente opostas, desenhou a visão de um dia como os outros.

Artigo publicado no Jornal de Noticias de Lisboa em 7 de abril de 2015


Miguel Guedes
Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.

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