José Roberto Afonso
Economista, pesquisador da FGV IBRE
e professor do IDP
Vol. 72 nº 05 MAIO 2018 - Artigo Publicado na Revista Conjuntura Econômica
Uma economia que demora a engatar uma recuperação consistente e rápida depois de enfrentar a pior recessão de sua história. Durante essa, recorreu ao ativismo fiscal que resultou em disparada do endividamento público, como no resto do mundo, porém o fez de forma peculiar, sem elevar investimentos fixos, sem cortar tributos de forma eficiente e com aumento desenfreado de crédito público barato. Mudada essa política econômica e lograda a estabilização de preços, não se consegue entregar o ajuste fiscal tão prometido e desejado, porque gastos seguiram crescendo mesmo com uma nova limitação institucional e a carga tributária não consegue retomar a níveis anteriores da crise. Reformas estruturais, nas raras vezes em que foram propostas, como no caso da Previdência Social, não avançaram.
Apesar desse cenário ser mais propenso a se ampliar reflexões e debates em torno de alternativas para mudar e ressuscitar a economia, me parece que pouco se tem avançado no Brasil. Entre tantas teorias e experiências, uma opção interessante poderia ser uma volta ao velho John Maynard Keynes, e especificamente em torno de sua produção original Investimentos públicos, Keynes, lições ignoradas e não de seus seguidores, que foram pouco fiéis as suas reflexões quando se tratou de política fiscal. Em particular, tentamos resgatar essas ideias no livro Keynes, crise e política fiscal, Saraiva, 2012.
Apesar desse cenário ser mais propenso a se ampliar reflexões e debates em torno de alternativas para mudar e ressuscitar a economia, me parece que pouco se tem avançado no Brasil. Entre tantas teorias e experiências, uma opção interessante poderia ser uma volta ao velho John Maynard Keynes, e especificamente em torno de sua produção original Investimentos públicos, Keynes, lições ignoradas e não de seus seguidores, que foram pouco fiéis as suas reflexões quando se tratou de política fiscal. Em particular, tentamos resgatar essas ideias no livro Keynes, crise e política fiscal, Saraiva, 2012.
Talvez menos em sua famosa
Teoria geral, e muito mais nos debates
que se seguiram a sua edição,1
Keynes se inquietava há quase um
século com crises que se assemelham
muito às que assolam o Brasil de
hoje. Apesar disso, nunca defendeu
a gastança pública, com geração de
déficit e dívida, sem controle e de
forma permanente, ao contrário de
sua lenda. Ele alternou diagnóstico e
propostas ao longo do tempo, defendendo
políticas econômicas diferentes
para circunstâncias distintas.
Assim, Keynes foi particularmente
inovador na leitura e tratamento das
contas públicas, mas ignorado por
muitos. É o caso típico da forma de
apresentação do orçamento público,
sendo sua iniciativa de pressionar as
autoridades britânicas para passar a
distinguir as despesas correntes das
de capital. Ele desceu aos detalhes
dos critérios de como classificar os
investimentos “abaixo ou acima da
linha”. Alegava que assim políticas do governo poderiam ser melhor
aceitas pelo parlamento e pelo público:
“a questão é essencialmente uma
questão de apresentação”.
Nunca se dá crédito a Keynes por
preceitos básicos da contabilidade
pública e da transparência fiscal. O
mais importante, porém, é perceber
sua visão mais abrangente e de economia
política. Ele queria corrigir
o erro de tratar todo gasto público
como se fosse igual para a economia.
O erro se repete hoje, ainda que
agora aglutinando tudo em despesas
primárias de um lado, e as financeiras
de outro (quer dizer, quando se
lembram que isso também é gasto).
É fato que, nos tempos de Keynes,
tanto o gasto público era baixo,
quanto a dívida era irrisória,
que não despertava preocupação
em como se conseguiria gerar saldos
suficientes para honrar o serviço da
dívida vincenda. Se perdeu a atenção
especial que Keynes dedicava aos
investimentos do governo em ativos
fixos, peça-chave de sua política fiscal.
O chamado orçamento corrente
deveria ser sempre equilibrado, mesmo
em tempos da grande recessão.
Aqui, e unicamente nessa época, ele
defendia um ativismo fiscal com dupla
função: que o governo aumentasse
fortemente o investimento (para
gerar demanda) à custa de expressivo
endividamento (para dar aos investidores
privados saída diante das
dúvidas com demais créditos).
Essa lógica keynesiana inspirou a
chamada regra de ouro: é aceitável
que o governo se endivide (até além
dos limites, como no caso europeu),
mas exclusiva e temporariamente para
financiar investimentos fixos. Nem é
preciso lembrar que o Brasil não consegue
cumprir esse preceito básico.
Keynes aceitava déficit, mas em caráter
temporário e focado no chamado
de orçamento de capital (até porque
obras não são permanentes). Mesmo
depois de superada a recessão e a guerra
mundial, ele escreveu que preferia
o investimento ao custeio: “... questão
é de grau ...”. Interpretamos que
qualidade importava tanto ou mais,
no horizonte mais largo, que apenas a
quantidade do gasto – inegavelmente
decisivo, mas no prazo curto e específico
da depressão. Por princípio, o investimento
público impactaria o capital,
tanto o preservaria quanto o elevaria,
o que não resultaria do gasto com o
custeio da máquina governamental.
Essa preferência não se aplica no
Brasil, apesar de ser uma economia
emergente com carga tributária acima
de 30% do PIB, próximo da mé-
dia das economias avançadas. Isto é
necessário face a um volume de gasto
público na casa dos 40% do PIB,
mas que não consegue ostentar uma
taxa de investimento governamental
minimamente decente: 2,05% do PIB
foi a média entre 2002 e 2015, oscilando
entre um piso de 1,53% em
2003 e o pico de 2,63% em 2010 –
ver gráfico. Comparado ao resto do
orçamento, foi de 6,4% da despesa
primária e 5,2% da receita líquida,
na média dos mesmos 15 anos.2
Esse cenário ficará ainda pior. A
expansão dos benefícios previdenciários e sociais, bem como da folha salarial
dos servidores, segue mesmo com sinais de queda estrutural da receita.
Como o limite ao crescimento do
gasto federal e exigido também dos
estados, se baseia na despesa primá-
ria e não diferencia sua composição,
forçará ainda mais o corte e ajuste de
investimentos (também pouco protegido
por vinculações de receita), bem
assim outras ações continuadas de
custeio (caso típico de pesquisa e inovação
ou serviços de saúde).
É um momento mais do que oportuno
para relembrar as lições de Keynes.
Ele insistia que se mostrasse o orçamento decomposto e se privilegiasse
os investimentos. As razões eram tanto
econômicas (um gasto no presente que
incrementaria a economia e geraria retorno
financeiro no futuro que pagasse
o serviço daquela dívida), quanto se
pode dizer que físicas (pelo impulso no
estoque de capital, especialmente vinculado
à infraestrutura). O economista
não pensava o investimento apenas
como uma forma de gasto autônomo
(para segurar e também impulsionar a
demanda, combalida pela depressão),
mas assumia um perfil de engenheiro
a defender como crucial que um país
elevasse o estoque de capital para assegurar
bem-estar social.
À parte reflexões teóricas e mesmo
trabalhando com o governo britânico,
Keynes notou que os investimentos
precisavam ser executados de
forma descentralizada (elogiava esse
traço mais típico e histórico nos Estados
Unidos que em um império centralizado)
e requeriam um planejamento
de longo prazo (defendia uma
junta para identificar oportunidades
e construir um banco de projetos).
Mesclando tais projetos, o grande
defensor do capitalismo pregava um
planejamento estatal forte, que trocasse
o improviso por ação coordenada,
em que o governo central acompanhasse
e incentivasse, mas deixasse
a maior parte das obras aos cuidados
dos serviços e governos locais.
Mais uma vez, se trata de questão
muito sensível ao caso brasileiro,
pois os governos municipais e estaduais
responderam, respectivamente,
por 40% e 37% do investimento do
governo geral, na média do período
2002-2015. O governo federal, no
pior ano, executou apenas 11% do investido
em 2003, e, no melhor, chegou
a 29% em 2011, refletindo uma forte
oscilação, que espelha no gasto agregado
– ver gráfico anexo. As prefeituras,
mesmo com ciclo eleitoral, sempre
investiram mais que a União, em cada
um dos últimos 15 anos (e em apenas
quatro anos, perderam dos governos
estaduais). Isso evidencia quão descentralizado
é o investimento no país
e, ao mesmo tempo, quão dependente
se torna da saúde e equilíbrio federativo.
Apesar dessa constatação, não se
tem sequer um sistema de informação,
quanto mais ações coordenadas para
ampliar e melhorar a qualidade do que
os governos investem.
Enfim, quando a incerteza domina
ou cega as perspectivas fiscais
e macroeconômicas, talvez ajude
em resgatar debates econômicos,
sobre como se entra e como se sai
de grandes crises, pensados há quase
um século atrás. Em particular,
muito se poderia aprender relembrando
os ensinamentos de Keynes
sobre como investimento público e
política fiscal podem ser decisivos
para a política macroeconômica. Se
até em economias avançadas tem
sido constatado impacto positivo
da inversão para o crescimento, que
dizer de emergentes.3
Um país que
despreze tal caminho pode ser condenado
a submergir.
1
A leitura obrigatória é o volume 27 de The
collected writings of John Maynard Keynes: activities
1940-1946, shaping the post-war, editado
por Donald Moggridge, Macmillan/Cambridge
University Press, 1980.
2
Ver séries históricas decompostas dos fluxos
do governo geral em Rodrigo Orair e Sérgio
Gobetti, “Resultado primário e contabilidade
criativa: reconstruindo as estatísticas fiscais
‘acima da linha’ do governo geral”, Texto para
Discussão 2288, Ipea, abril/2017.
3
Ver Abdul Abiad, et.al. “The macroeconomic
effects of public investiment: evidence from
advanced economies”, Working Paper 15/95, IMF,
may/2015.
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