Conto: Depois da corrida, de James Joyce - Blog A CRÍTICA

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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Conto: Depois da corrida, de James Joyce

*A quarta corrida anual Gordon-Bennet, que ocorreu na Irlanda no dia 2 de julho de 1903.
 
Os carros vinham disparados para Dublin, correndo lisos como projéteis pelo sulco da Naas Road. No topo da colina de Inchicore os espectadores estavam agrupados para ver os carros voarem para casa e por esse canal de pobreza e de inação o Continente acelerava sua riqueza e sua indústria. De vez em quando os grupos de espectadores soltavam seus vivas de oprimidos agradecidos. Sua estima, no entanto, era pelos carros azuis — os carros de seus amigos, os franceses.

Os franceses, além de tudo, eram praticamente os vencedores. Sua equipe tinha terminado bem; chegaram em segundo e terceiro e dizia-se que o piloto do carro alemão era belga. Cada carro azul, portanto, recebeu uma dupla rodada de boas-vindas quando assomou no topo do morro e cada grito de boas-vindas foi recebido com sorrisos e acenos de cabeça dos que estavam no carro. Num desses carros de formas elegantes havia um grupo de quatro rapazes cujo ânimo parecia então bem acima do nível do galicismo bem-sucedido: a bem da verdade, esses quatro rapazes estavam quase às gargalhadas. Eles eram Charles Ségouin, o dono do carro; André Rivière, um eletricista canadense de nascimento; um húngaro enorme chamado Villona e um rapaz arrumadinho chamado Doyle. Ségouin estava de bom humor porque tinha inesperadamente recebido algumas encomendas (estava prestes a abrir uma oficina em Paris) e Rivière estava de bom humor porque seria nomeado gerente do estabelecimento; esses dois rapazes (que eram primos) também estavam de bom humor por causa do sucesso dos carros franceses. Villona estava de bom humor porque teve um almoço muito satisfatório; e além disso era um otimista nato. O quarto membro do grupo, no entanto, estava empolgado demais para estar verdadeiramente feliz.

Tinha cerca de vinte e seis anos de idade, com um bigode macio e castanho-claro e olhos cinzentos que pareciam algo inocentes. Seu pai, que tinha começado a vida como nacionalista avançado, vinha mudando de ponto de vista. Ganhou dinheiro como açougueiro em Kingstown e ao abrir filiais em Dublin e nos subúrbios ganhou dinheiro em dobro. Também teve a sorte de conseguir alguns contratos com a polícia e no fim estava rico a ponto de ser mencionado nos jornais de Dublin como um príncipe do comércio. Mandou o filho para a Inglaterra, para ser educado numa grande escola católica, e depois o mandou para a Dublin University* para estudar direito. Jimmy não levava muito a sério os estudos e andou um pouco por maus caminhos. Tinha dinheiro e era popular; e dividia seu tempo curiosamente entre o círculo musical e o automobilístico. Depois foi mandado para um semestre em Cambridge, ver um pouco a vida.** O pai, rezinguento mas disfarçadamente orgulhoso desses excessos, pagou as contas e o trouxe para casa. Foi em Cambridge que ele conheceu Ségouin. Ainda eram pouco mais que conhecidos mas Jimmy se divertia muito na companhia de alguém que tinha viajado tanto e que diziam que era dono de alguns dos maiores hotéis da França. Uma pessoa dessas (como concordava seu pai) valia muito a pena, mesmo se não fosse a companhia agradabilíssima que era. Villona também era divertido — um pianista brilhante — mas, infelizmente, muito pobre.

O carro corria alegre com sua carga de hilária juventude. Os dois primos estavam no banco da frente; Jimmy e seu amigo húngaro sentavam atrás. Decididamente Villona estava com um humor excelente; manteve um murmúrio grave e ressonante de melodias que duraram quilômetros. Os franceses soltavam risadas e comentários ligeiros por cima dos ombros e muitas vezes Jimmy teve que se esticar para a frente para pegar a frase breve. Isso não era lá muito agradável para ele, já que tinha quase sempre que chutar qual seria o sentido do que eles disseram e gritar uma resposta adequada na cara de um vento forte. Além disso o murmúrio de Villona seria capaz de deixar qualquer um confuso; o barulho do carro também.

O movimento rápido no espaço gera êxtase; assim como a notoriedade; assim como ter dinheiro. Eram três bons motivos para a empolgação de Jimmy. Tinha sido visto por vários de seus amigos naquele dia na companhia desses europeus. No controle da prova Ségouin o apresentou a um dos competidores franceses e, em resposta a seu confuso murmúrio de saudação, o rosto amorenado do piloto revelou uma linha de dentes brancos reluzentes. Foi agradável depois dessa honra voltar ao mundo profano dos espectadores em meio a cutucões e olhares significativos. Já no que se refere ao dinheiro — ele estava mesmo de posse de uma grande soma. Ségouin talvez não pensasse que se tratava de uma grande soma, mas Jimmy, que apesar de erros temporários no fundo do coração era herdeiro de instintos bem sólidos, sabia muito bem com que dificuldade ela tinha sido amealhada. Essa consciência sempre tinha mantido suas contas dentro dos limites de uma imprudência razoável e, se tinha tanta consciência do trabalho latente no dinheiro quando o que estava em questão era meramente alguma aberração da inteligência superior, tanto mais se mostraria agora, quando estava prestes a apostar a maior parte desse patrimônio! Era algo sério para ele.
É claro que o investimento era bom e Ségouin tinha conseguido passar a impressão de que era por um favor entre amigos que a migalha de dinheiro irlandês seria incluída no capital a ser investido. Jimmy tinha respeito pela sagacidade do pai em questões de negócios e nesse caso seu pai tinha sido o primeiro a sugerir o investimento; havia dinheiro a se ganhar no ramo automobilístico, baldes de dinheiro. Além do mais Ségouin tinha um inequívoco ar de riqueza. Jimmy se pôs a converter em dias trabalhados aquele carro imponente em que estava sentado. Como andava macio. Com que estilo eles passaram em disparada pelas estradinhas do interior! A jornada punha um dedo mágico no verdadeiro pulso da vida e, galante, o maquinário dos nervos humanos se esforçava para responder ao trajeto saltitante do veloz animal azul.

Eles desceram a Dame Street. A rua estava tomada de um trânsito incomum, ressonante com as buzinas dos motoristas e os gongos de motorneiros impacientes. Perto do Banco Ségouin encostou e Jimmy e seu amigo desceram. Um grupinho se formou na calçada para prestar homenagem ao motor que roncava. O grupo ia jantar aquela noite no hotel de Ségouin e, enquanto isso, Jimmy e seu amigo, que ficaria hospedado com ele, iriam para casa se trocar. O carro seguiu lento para a Grafton Street enquanto os dois rapazes abriam caminho entre o grupinho de admiradores. Foram rumo ao norte com uma curiosa sensação de desapontamento com o exercício enquanto a cidade pendurava seus pálidos globos de luz sobre eles na leve neblina de uma noite de verão.

Na casa de Jimmy esse jantar tinha sido declarado ocasião importante. Certo orgulho se misturava à agitação de seus pais, certa ânsia, também, de arriscar tudo pois os nomes de grandes cidades estrangeiras têm pelo menos essa virtude. Jimmy, de resto, ficava bem bonito quando se arrumava e, parado ali no corredor dando uma última equação aos laços da gravata de cerimônia, seu pai pode ter se sentido até comercialmente satisfeito por ter garantido para o filho qualidades que em geral não se compram. Seu pai, portanto, foi anormalmente amigável com Villona e seus modos manifestavam verdadeiro respeito pelas realizações estrangeiras; mas essa sutileza de seu anfitrião provavelmente passou despercebida pelo húngaro, que estava começando a sentir um desejo agudo de jantar.

O jantar estava excelente, maravilhoso. Ségouin, Jimmy decidiu, tinha um gosto dos mais refinados. O grupo aumentou com um rapaz inglês chamado Routh que Jimmy tinha visto com Ségouin em Cambridge. Os rapazes fizeram sua refeição num cômodo confortável iluminado por candeeiros elétricos. Conversaram solto e com poucas reservas. Jimmy, cuja imaginação estava se acendendo, sonhou a animada juventude dos franceses entrelaçada à firme moldura dos modos do inglês. Uma imagem elegante que ele criou, ele pensou, e justa. Admirou a destreza com que o anfitrião dirigia a conversa. Os cinco rapazes tinham gostos variados e estavam com a língua já mais solta. Villona, com imenso respeito, começou a revelar para o inglês algo surpreso as belezas dos madrigais ingleses, lamentando a perda dos instrumentos antigos.*** Rivière, de maneira não de todo inocente, se pôs a explicar para Jimmy o triunfo dos mecânicos franceses. A ressonante voz do húngaro estava prestes a prevalecer, ridicularizando os espúrios alaúdes dos pintores românticos quando Ségouin pastoreou o grupo rumo a questões políticas. Era um terreno fértil para todos. Jimmy, já generosamente alterado, sentiu o ímpeto soterrado do pai ganhar vida dentro de si: ele finalmente conseguiu provocar o entorpecido Routh. O cômodo ficou ainda mais quente e a tarefa de Ségouin se complicava mais a cada momento: havia mesmo o risco de ofensas pessoais. Na primeira oportunidade o atento anfitrião ergueu sua taça para a Humanidade e, quando todos tinham bebido a ela, ele abriu significativamente a janela.

Naquela noite a cidade usava a máscara de uma capital.**** Os cinco rapazes passearam pelo Stephen’s Green em meio a vaga nuvem de neblina aromática. Conversavam alto, alegres, e suas capas lhes pendiam dos ombros. As pessoas abriam caminho para eles. Na esquina da Grafton Street um gordo baixinho colocava duas senhoras num coche aos cuidados de outro gordo. O coche se afastou e o gordo baixinho percebeu o grupo.

— André.

— É o Farley!

Seguiu-se uma torrente de conversa. Farley era americano. Ninguém sabia bem ao certo de que se falava ali. Villona e Rivière eram os mais ruidosos, mas estavam todos empolgados. Eles subiram num coche, onde se espremeram todos juntos com muito riso. Passaram pela multidão, agora harmonizada em cores fracas, ao som de alegres sinos. Pegaram o trem em Westland Row e em poucos segundos, pelo que pareceu a Jimmy, estavam saindo da estação de Kingstown. O cobrador cumprimentou Jimmy; era um homem de idade:

— Excelente noite, senhor!

Era uma noite serena de verão; o porto se estendia como um espelho enegrecido aos pés deles. Foram na sua direção de braços dados, cantando “Cadet Rousselle”***** em coro, batendo o pé no chão a cada:

— Ho! Ho! Hohé, vraiment!

Eles entraram num bote na rampa de embarque e seguiram para o iate do americano. Haveria comida, música, cartas. Villona disse com convicção:

— Que coisa mais linda!

Havia um piano de bordo na cabine. Villona tocou uma valsa para Farley e Rivière, Farley fazendo o cavalheiro e Rivière, a dama. Depois uma quadrilha improvisada, com os homens criando figuras originais. Que alegria! Jimmy participou empolgado; isso é que era ver a vida. Então Farley ficou sem fôlego e gritou Chega! Um homem trouxe uma ceia leve, e os rapazes se sentaram à mesa por formalidade. Mas beberam: era algo boêmio. Beberam à Irlanda, à Inglaterra, à França, à Hungria, aos Estados Unidos da América. Jimmy fez um discurso, longo, com Villona dizendo Deveras! Deveras! a cada vez que havia uma pausa. Houve muitos aplausos quando ele se sentou. Deve ter sido um bom discurso. Farley lhe deu tapinhas nas costas e riu alto. Que camaradas mais alegres! Que boa companhia eles eram!

Cartas! Cartas! Limparam a mesa. Villona voltou silenciosamente ao seu piano e tocou voluntaries****** para eles. Os outros jogaram uma partida depois da outra, entrando de peito aberto na aventura. Beberam à saúde da Rainha de Copas e da Rainha de Ouros. Jimmy sentia vagamente a falta de uma plateia: a inteligência brilhava nas sentenças. O cacife foi subindo e cédulas começaram a trocar de mãos. Jimmy não sabia exatamente quem estava ganhando mas sabia que estava perdendo. Mas era culpa dele mesmo pois com frequência confundia as cartas que tinha e os outros homens tinham que calcular para ele o valor de suas promissórias. Eram camaradas bons como o diabo mas ele preferia que parassem: estava ficando tarde. Alguém brindou ao iate A Bela de Newport e aí alguém propôs uma última partida séria para encerrar.

O piano tinha parado; Villona devia ter subido ao convés. Foi uma partida terrível. Eles pararam logo antes do fim para beber à sorte. Jimmy entendeu que a partida estava entre Routh e Ségouin. Que empolgação! Jimmy também estava empolgado; ia perder, é claro. Com quanto já tinha se comprometido? Os homens levantaram para jogar os últimos lances, conversando e gesticulando. Routh venceu. A cabine tremia com a festa dos rapazes e as cartas foram empilhadas novamente. Começaram a juntar o que tinham ganhado. Farley e Jimmy eram os que tinham perdido mais.

Ele sabia que ia se arrepender de manhã mas agora estava contente pelos outros, contente pelo negro estupor que encobriria sua insensatez. Apoiou os cotovelos na mesa e descansou a cabeça entre as mãos, contando as pulsações das têmporas. A porta da cabine se abriu e ele viu o húngaro parado num raio de luz cinzenta:

— Nasceu o dia, cavalheiros!



* O Trinity College, universidade protestante.

** Não era anormal que os filhos das elites apenas passassem por uma das grandes universidades britânicas, sem planos de se formar.

*** Começava a ressurgir um interesse, entre os intelectuais mais informados, pela música renascentista. O próprio Joyce chegou a pensar em encomendar um alaúde e ganhar dinheiro cantando
árias de John Dowland. 

**** Nesse momento, a capital de fato da Irlanda era Londres.

***** Canção satírica francesa (1792) de Gaspard de Chenu (1717‑95). “Vraiment” significa “de fato”, “verdadeiramente”.

****** Peças improvisadas, normalmente tocadas ao órgão, antes e depois do serviço religioso.


Conto presente no livro:

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