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segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Saudades de um Brasil camuflado

Luiz Roberto Serrano é jornalista e superintendente de Comunicação Social da USP

Luiz Roberto Serrano -Foto: Cecília Bastos/USP Imagens


Jornal da USP

Dia desses, ouvindo a Rádio USP, eu e os ouvintes fomos premiados com duas canções que me deram saudades do Brasil.
Feio não é bonito e o Samba do Crioulo Doido.
Saudades de um Brasil que ainda carregava a simplicidade, a criatividade e a esperança dos anos JK, nos quais a bossa nova, o cinema, o teatro, o futebol, a indústria automobilística, Brasília desenhavam um futuro risonho e franco, em que teríamos avançado 50 anos em 5, o país do futuro se concretizaria.
O Rio de Janeiro ainda era a forte referência cultural do Brasil. Tudo acontecia lá e se espraiava para o Brasil via as ondas de rádio, já que as redes de TV ainda eram incipientes, sua programação era distribuída em fitas de videotape, transportadas em aviões da Real Aerovias ou da Panair do Brasil.
Cantar o Rio de Janeiro era cantar o Brasil.
Feio não é bonito, composta por Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri, cantava os morros ainda ingênuos da ex-capital federal. Foi lançada no já fatídico 1964, quando os ventos alegres e otimistas que vinham dos anos 1950 eram desviados pelo início do regime militar.
Salve as belezas desse meu Brasil
Com seu passado e tradição
E salve o morro cheio de glória
Com as escolas que falam no samba
Da sua história.

Feio, não é bonito
O morro existe
Mas pede pra se acabar
Canta, mas canta triste
Porque tristeza
E só o que se tem pra contar…


A letra joga com o contraste entre a visão romântica com que a cidade encarava o mundo das favelas e os sentimentos de seus moradores que almejavam viver como no asfalto, para onde cotidianamente desciam para ganhar a vida. Uma época em que os crimes nas favelas eram de amor e ciúme, como Vinicius de Moraes e Antonio Carlos Jobim encenaram em Orfeu da Conceição, a versão carioca da grega Orfeu e Eurídice.
Em 1963, refletindo os sentimentos da época, Tom Jobim já compusera O morro não tem vez:
O morro não tem vez
e o que ele fez já foi demais
Mas olhem bem vocês
Quando derem vez ao morro
Toda a cidade vai cantar

Pois bem, vencido mais de meio século, tirante os midiáticos desfiles no carnaval e seus sambas enredo, hoje a cidade não canta o que vem do morro.
O que desce de lá, infelizmente, são notícias, não de embates de amor e ciúmes, mas de disputa de territórios entre traficantes, tiroteios entre eles, entre eles e a polícia, e mortes, muitas mortes, inclusive de crianças.
Já os versos do Samba do crioulo doido, sátira do genial jornalista carioca Sérgio Porto, codinome Stanislaw Ponte Preta, são de 1966, ano em que a ditadura cassava e perseguia, mas ainda não chegara ao AI-5 do fim de 1968. Stanislaw, brilhante colunista do ainda resistente jornal Última Hora – originalmente criado para apoiar o segundo governo de Getúlio Vargas –, a compôs para o musical Pussy Cat, dirigido por Carlos Machado, o rei do teatro rebolado.
Para compô-la, Stanislaw inspirou-se justamente no trabalho dos compositores de samba-enredo dos morros cariocas. A introdução da música, que nem sempre é apresentada, diz:
Este é o samba do crioulo doido.
A história de um compositor que durante muitos anos obedeceu o regulamento,
E só fez samba sobre a história do Brasil.
E tome de inconfidência, abolição, proclamação, Chica da Silva, e o coitado
Do crioulo tendo que aprender tudo isso para o enredo da escola.
Até que no ano passado escolheram um tema complicado: a atual conjuntura.
Aí o crioulo endoidou de vez, e saiu este samba:

Foi em Diamantina
Onde nasceu JK
Que a princesa Leopoldina
Arresolveu se casar
Mas Chica da Silva
Tinha outros pretendentes
E obrigou a princesa
A se casar
Com Tiradentes…


Não há quem não conheça essa letra. Seria possível compor algo semelhante nos dias de hoje, tempos do politicamente correto?
Feio não é bonito e Samba do crioulo doido me proporcionaram um momento de saudade, da minha juventude, de boas lembranças, de reflexão sobre a nossa cultura e nossa história – bem diferente do atual, preocupante, incerto, radicalizado.
Entre as duas épocas há dois Brasis.
No passado, um país que acelerava sua transformação de predominante agrário para urbano e industrial, em que as mazelas, como pobreza, racismo, violência, ainda não vinham à tona com tanta clareza e força, como atualmente. Não eram tão percebidas, eram ignoradas e até mesmo camufladas, pois os sistemas de comunicação ainda eram elitistas e rarefeitos.
No Brasil de hoje, de urbanização congestionada, excessiva e explosiva, os desequilíbrios e carências sociais são diariamente escancarados, viralizam pelas novas mídias, nos alcançam em todos os cantos.
Sinalizam que nossa sociedade precisa ser reconstruída, urgentemente.
Ser uma sociedade em que morro e asfalto cantem juntos, como versejou Tom Jobim.
Sem camuflagem.

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