Karina Toledo | Agência FAPESP – A criação de um auxílio emergencial para os trabalhadores que ficaram sem renda durante a pandemia reduziu a extrema pobreza ao menor nível dos últimos 40 anos, transformou a percepção da sociedade acerca das medidas de proteção social e levou a discussão sobre desigualdade a um novo patamar no país.
A avaliação foi feita na última quarta-feira (02/09) por economistas que participaram do seminário on-line “COVID-19 Economic Recovery Strategies: basic income”, promovido pela FAPESP. Segundo os pesquisadores, seria impossível tornar permanente o benefício de R$ 600 para quase metade da população sem uma verdadeira revolução fiscal e legislativa. Por outro lado, o retorno ao modelo de transferência de renda vigente até março de 2020 tão pouco parece uma opção aceitável. Qual seria então o caminho a seguir? Teria chegado a hora de se falar seriamente sobre a implantação de um programa de renda básica universal?
Para o economista Naercio Menezes Filho, professor da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), concentrar os recursos de proteção social nas famílias pobres com filhos seria uma forma mais eficaz e menos custosa de garantir a igualdade de oportunidades à futura geração de brasileiros. A sugestão de Menezes Filho é que seja fortalecida a inclusão social nos primeiros anos do ensino.
“Quando se nasce pobre no Brasil, os problemas se acumulam ao longo da vida e tornam muito difícil a concretização de projetos e sonhos. Isso desestimula os jovens a estudar, a fazer faculdade e a buscar um emprego formal, afetando sua produtividade”, afirmou o economista.
Segundo Menezes Filho, o Programa Bolsa Família foi bem-sucedido na redução da pobreza extrema, ou seja, garantiu que a maioria dos brasileiros tivesse acesso ao número de calorias diárias necessário para sobreviver. Mas esse benefício precisaria ser ampliado para ter um efeito real sobre a pobreza. “Hoje, apenas 64% dos pobres do país são atendidos e metade deles ainda permanece pobre após receber o benefício”, disse.
Ele sugere que se use o aplicativo criado para o pagamento do auxílio emergencial na concessão de um benefício de R$ 800 aos 3,62 milhões de famílias pobres com filhos do país. De acordo com simulações apresentadas no evento, a medida beneficiaria mais de 5 milhões de crianças, custaria R$ 69 bilhões ao ano e garantiria que 93% das famílias com filhos saíssem da condição de pobreza, tendo acesso garantido a roupas, produtos de higiene, transporte e outras necessidades essenciais.
Embora os custos estimados sejam bem menores que os R$ 50 bilhões mensais do auxílio emergencial, é mais que o dobro dos R$ 33 bilhões anuais do Bolsa Família. Essa diferença, segundo Menezes Filho, poderia ser compensada com um aumento da carga tributária que incide sobre a parcela mais rica da população.
Estratégia semelhante foi defendida pelo pesquisador Rodrigo Orair, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
“No Ipea discutimos um programa híbrido: focado nas famílias mais pobres, mas com um componente de universalidade para as crianças. Esse mix pode ser mais eficaz para reduzir a pobreza do que a renda básica universal”, afirmou.
Segundo Orair, há várias razões para que o alcance de benefício seja universal no caso das crianças, entre elas o fato de a pobreza ser mais frequente e mais acentuada entre as famílias com filhos.
“Manter o auxílio emergencial custaria 7,5% do Produto Interno Bruto (PIB), isso seria irrealista. Mas o Bolsa Família também ficou pequeno para a realidade atual. Até onde podemos ir? Podemos optar por manter a neutralidade fiscal e, nesse caso, o novo programa não poderia custar mais do que 0,8% do PIB. Podemos aumentar esse custo para 2% ou 3%, mas quais seriam os possíveis cenários de financiamento?”, questionou.
Aumentar imposto em meio à recessão econômica não é viável, reconhece o pesquisador. Mas seria possível ampliar a base de arrecadação por meio de uma reforma tributária capaz de eliminar os “furos” do sistema atual, que tornam possível aos mais ricos pagar muito pouco imposto proporcionalmente.
“Medidas simples, como taxar lucros e dividendos, não resolvem. É preciso reformar todo o sistema e, em paralelo, introduzir a taxação progressiva de renda e riqueza”, argumentou.
Utopia x realidade
A ideia de uma renda mínima para a subsistência oferecida de forma permanente pelo Estado a todos os cidadãos tem mais de 500 anos e voltou a ganhar força com a crise econômica global provocada pela COVID-19. “Mais de 200 países introduziram medidas de proteção social como parte da resposta à pandemia”, contou Ugo Gentilini, economista sênior do Banco Mundial e autor de um livro referência sobre o tema.
Segundo o pesquisador, existem muitas definições e modelos diferentes para o que se chama de universal basic income (UBI), que variam de acordo com o propósito da medida. O governante pode buscar a redução da pobreza e da desnutrição, estimular a economia por meio do aumento do consumo, combater a perda de empregos em um setor específico, entre outros objetivos.
“Há diferentes interpretações para o conceito de universalidade. Pode ser simplesmente buscar um resultado universal, por exemplo, garantindo que todos os cidadãos aprendam a ler”, explicou.
Foi somente na Mongólia que Gentilini encontrou um programa que atendia a todos os requisitos propostos para a UBI: transferência regular de renda, em dinheiro, de forma universal, incondicional e em âmbito nacional. No entanto, após dois anos, a medida foi interrompida por “volatilidade de financiamento”.
Na avaliação da professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Rozane Bezerra de Siqueira a implantação de um programa desse tipo no Brasil traria inúmeros benefícios. Além de eliminar a pobreza, promoveria maior equidade e coesão social e daria mais legitimidade ao Estado.
Durante o seminário, a pesquisadora apresentou resultados de simulações feitas por ela em parceria com José Ricardo Nogueira, também da UFPE, para estimar o custo e os efeitos da implantação de uma renda universal no valor de R$ 406 com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2017.
Um dos cenários combina a renda básica universal – que nesse caso custaria 11,5% do PIB (R$ 758 bilhões, em 2017) – com um imposto proporcional sobre todas as outras rendas, cuja alíquota seria de 37,5% (flat rate) e substituiria o atual imposto de renda da pessoa física, bem como as contribuições previdenciárias dos empregados. A medida, segundo Siqueira, permitiria reduzir o coeficiente de Gini – indicador que mede a desigualdade de renda e varia entre 0 e 1 – dos atuais 0,54 para 0,38.
De acordo com um relatório divulgado há cerca de seis meses pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo, ficando atrás apenas de nações do continente africano.
“Talvez haja importantes lições a serem aprendidas com a crise causada pela pandemia”, destacou Luiz Eugênio Mello, diretor científico da FAPESP, durante a abertura do seminário. “As preocupações iniciais estavam relacionadas com a descoberta de uma vacina ou de novas drogas. À medida que o tempo passa, porém, começamos a nos preocupar com as consequências adicionais, entre elas a atividade econômica, que foi severamente afetada.”
As discussões do evento foram moderadas pela cientista social e professora da Universidade de São Paulo (USP) Marta Arretche. A íntegra está disponível no canal da Agência FAPESP no Youtube.
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