Nárnia existe e Bolsonaro mora lá - Blog A CRÍTICA

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segunda-feira, 22 de março de 2021

Nárnia existe e Bolsonaro mora lá



por Rosana Tenetti


Tenho cá minhas razões para acreditar que o governo de Jair Bolsonaro se mudou para uma Nárnia às Avessas e, de vez em quando, passa por aqui para ver o que rola no universo alternativo. A equipe alienada entrou em um guarda-roupa mofado, embaralhado por teias de aranha, e saiu do outro lado, caminhando em um mundo de lendas. Enquanto isso, o brasileiro, que se mantém na banda de fora do armário ficou contando, em tempo real, seus mortos e vê a curva de contaminados por Covid-19 crescer exponencialmente. Por mais surreal que pareça, foi nisso que o presidente apostou desde o começo da pandemia, ao preconizar que uma Nação, como o Brasil, só estaria livre do vírus quando um certo número de pessoas fosse infectado e criasse anticorpos – sendo parte sepultos. O certo número, atualizado em milhões, e os tais anticorpos dispensam comentários de qualquer cidadão minimamente informado.


Próximo a contabilizar 300 mil vidas perdidas e com 12 milhões de infectados, confirmados, pelo vírus, o país está de joelhos, vendo um sistema de saúde, tanto público quanto privado, colapsado. Com pouco mais de 5% dos 211 milhões de brasileiros vacinados – a única arma capaz de levar o inimigo a nocaute -, o governo bolsonarista continua vendo o cenário através das lentes da fantasia. Tal como o líder do governo na Câmara, deputado federal Ricardo Barros (PP-PR), ao afirmar que a situação em que se encontra o País “não é tão crítica” se comparada à de outros países. “É até confortável”, pontuou. Só se esqueceu de combinar com o restante do planeta. A começar pela imprensa internacional, que destaca o iminente sistema de saúde brasileira, com recordes de mortes e o risco de novas variantes do vírus, mais contagiantes. Bolsonaro é descrito como um “líder vingativo”, cuja atuação é “irresponsável e perigosa”, investindo o precioso tempo contra a pandemia em brigas com juízes, parlamentares e “até os próprios ministros”.


Enquanto governadores e prefeitos estão preocupados com a disseminação cada vez mais rápida da doença, o presidente vive às turras com aqueles que discordam de seu pensamento desvairado. O gigante da América do Sul se tornou uma ameaça global. Atualmente, 108 países barram a entrada de brasileiros. E a panaceia de Bolsonaro o isolou das grandes líderanças mundiais, batendo na mesma tecla de que é preciso salvar a economia. Ignorando por completo que sem saúde não há mercado econômico capaz de resistir e prosperar. Pelo contrário, ele o está conduzindo-o, graças à sua inépcia e incapacidade de gerenciar a crise sanitaria, para o fundo do poço.


Nos momentos em que Bolsonaro e sua trupe decidem dar uma espiada no que acontece no reino dos maricas, o presidente usa máscara, mas nos olhos. Não quer ver. Muito menos ouvir. Lava as mãos no melhor estilo Pôncio Pilatos. Seu impulso é sempre bradar, com o intuito de insultar, ofender, agredir, promover a discórdia, apostar na cisão e soltar o vírus verbal que habita em sua alma infectada pelo ódio! Em oposição a Nárnia, no Brasil de 2021 o relógio não trava os ponteiros. Famílias, destroçadas e esvaziadas, continuam a chorar seus mortos, com quase 3.000 adeus diários; nas UTIs, pacientes intubados lutam por suas vidas; nos hospitais, equipes médicas estão exauridas, não conseguem dar conta da avalanche de novos casos que desembarca diariamente nas unidades de todo o País, onde faltam leitos, medicamentos e equipamentos indispensáveis para o tratamento dos doentes, como cilindros de oxigênio. Porém, do alto da torre de Nárnia, Bolsonaro não enxerga problemas. Lógico! Nunca desceu de seu pedestal para visitar a rotina de um único hospital público.


Diante deste contexto caótico, prefere recorrer ao beco do guarda-roupa e voltar para Nárnia. Afinal, o chefe da Nação não é coveiro. É, tão somente, o presidente da República. E daí? Daí que todos nós iremos morrer um dia. E foi em mais um de seus inúmeros delírios que, antes de escapulir pelo armário, o mito receitou para a “gripezinha”, com base em seus poderes de curandeiro e histórico de atleta, o tratamento preventivo com cloroquina, hidroxicloroquina ou ivermectina. Não importa que este kit anti-covid não tenha comprovação científica, seja declarado ineficaz pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e que possa até causar sérias complicações para a saúde quando ministrado sem qualquer respaldo da medicina. O mentecapto insiste e persiste na sua tese, mantém sua marcha aliada ao vírus, negando a ciência e rechaçando especialistas em medicina.


Do alto da sua prepotência mirabolante, Bolsonaro ordenou que o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército gastasse R$ 1,1 milhão na fabricação de 3,2 milhões de comprimidos, além dos que foram doados pelos EUA ao serem suspensos por lá. O ex-presidente norte-americano Donald Trump brindou o Brasil com mais dois milhões de doses do remédio, sem eficácia, na luta contra o vírus. O resultado da boçalidade são 2,5 milhões de unidades encalhadas no Ministério da Saúde, com vencimento para 2022. No auge da máxima da filosofia bolsonarista, disparou: “quem é de esquerda, toma cloroquina; quem é de direita, tubaína”. Os que deram voz à ciência beberam, felizes, o refrigerante com sabor de tutti-frutti.


Num dia de maio de 2020, quando o País batia a triste marca de 140 mil infectados e 9 mil vidas ceifadas pela moléstia, Bolsonaro foi a público informar que realizaria uma comemoração regada a churrasco. Anunciou que a festinha, para bater um papo e jogar uma peladinha, seria na sua terra mágica, adornada pelos miquinhos amestrados do Palácio do Planalto. Falou e depois desmentiu, declarando que a notícia era “fake”. Mais uma bola dentro de quem vive em Nárnia, onde a compreensão de fake news se contrapõe à utilizada pelos meios de comunicação por aqui. Sem falar que a ocasião pedia compaixão e pesar, em vez de escárnio. E no último domingo (21), ao completer 66 anos, o presidente foi ao encontro de apoiadores no espelho d’água do Palácio e causou aglomeração. Cumprimentou alguns deles e pegou uma criança no colo. Cortou um bolo e o entregou pela grade a seus apoiadores do cercadinho. Tudo sem máscara, sendo verdadeiramente o Jair.


Em ritmo acelerado, chefes de Estado do mundo deram a largada para garantir vacinas contra a Covid-19. A passos de tartaruga e desqualificando os imunizantes, o mitossauro eclodiu de seu universo paralelo para disparar sua metralhadora cheia de mágoas: “diante de um mercado consumidor como o Brasil, os fabricantes de vacina deveriam nos procurar, e não o contrário”, esbravejou. Coerência genuína, já que em Nárnia se desconhece o modelo econômico capitalista da lei da oferta e da procura, que regula preços de acordo com a demanda. Principalmente porque, alegam por lá, que quem toma vacina vira jacaré. Esta eloquência começou a dar sinais de fragilidade quando o Napoleão de Hospício se deu conta da mobilização do governador paulista, João Doria (PSDB-SP), viu a lacuna deixada pelo chefe da Nação e, de olho nas urnas em 2022, apostou todas as suas fichas na coronavac, vacina do Instituto Butantan. Arqui-inimigo político de Doria, o presidente desdenhou e disse que não queria saber da “vachina” (junção jocosa das palavras vacina e China), ignorando até mesmo o envio de três ofícios do Instituto ofertando doses ao Ministério da Saúde.


O paradoxo tosco da Nárnia bolsonarista chamou a atenção até do ogro Shrek, que se contorceu de inveja ao ver Bolsonaro, meses depois, explodir dentro de sua bolha distópica: “Tem idiota que diz vai comprar vacina. Só se for na casa da tua mãe. Não tem para vender no mundo”. Quanto à “vachina”, não demorou muito até que o governo


federal caísse na real e voltasse atrás, exigindo a aquisição exclusiva de todo o estoque do Butantã. Com a maior cara de pau, dizendo que “investiu” no Butantã e que tinha direito sobre os lotes. Vamos dar a César o que é de César: o Ministério da Saúde apenas comprou, nunca aplicou um único centavo no desenvolvimento tecnológico da coronavac. A pergunta que não quer calar: quem foi verdadeiro, o mitossauro ou o tosco?


Passado um ano de pandemia e o Brasil factual ainda tem que rivalizar com a Nárnia bolsonarista. Neste período, o País enveredou pela passagem de quatro ministros da saúde – sendo que para o último a nomeação segue em curso. Por ora, dois chefes comandam a mesma Pasta dentro da orbe dos absurdos. O troca-troca se deve porque a Rainha de Copas, importada do País das Maravilhas por Nárnia, materializou-se no corpo de Bolsonaro, mandando-o decapitar qualquer ser pensante e minimamente alinhado ao bom senso. Intolerante na sua essência, degola quem não topa jogar as regras do seu carteado, seja médico ou militar.


É natural que os médicos são mais contundentes ao contrariar as ordens da Rainha, já que preferem honrar o juramento de Hipócrates e a carreira profissional, onde investem conhecimento e dedicação, a ter que obedecer quem não entende e nem quer saber de competência técnica. Ao contrário dos militares, é mais natural bater continência e dizer “sim senhor” para o capitão. “É simples! Ele manda, eu obedeço”, admitiu, sorrindo e satisfeito, o terceiro ministro no cargo, o general Eduardo Pazuello – que preferiu desagradar o Exército, que de maneira sensata e coerente o preferia na reserva a continuar ministro.


À frente do Ministério depois de suceder dois médicos, Henrique Mandetta e Nelson Teich, que pularam do Titanic antes que seus currículos fossem sugados pelas águas turvas e profundas da ignorância, o general três estrelas passará o bastão para o quarto ministro, o cardiologista Marcelo Queiroga. Fiel escudeiro do negacionismo do presidente, Pazuello protagonizou uma série de trapalhadas, levou à tona prejuízos em vidas e em recursos financeiros ao sistema de saúde público. De quebra, parte não se sabe para onde, ainda, com pelo menos quatro inquéritos que tramitam e apuram as responsabilidades do ministro na luta contra a epidemia. Um deles é criminal e se encontra no Supremo Tribunal Federal (STF).


Indicado pelo filho do presidente, Flávio Bolsonaro – o senador da mansão de R$ 6 milhões e envolvido em esquemas de rachadinhas na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro -, Queiroga deu alguns indícios de que chegou recentemente de Nárnia. Será um Pazuello de jaleco, a cumprir o riscado irresponsável do presidente. O antecessor, colocando as palavras na boca do herdeiro, anunciou: “ele reza pela mesma cartilha e representa a continuidade da atual política no combate ao coronavírus”, garantiu Pazuello. Combate este que jamais passou de retórica. Nunca houve qualquer planejamento e cumprimento de medidas pautadas pela ciência. Só omissão e descaso. Sem querer generalizar, e com todo o respeito e a importância que os militares têm e merecem por seu papel na ordem e segurança do País, as Forças Armadas deveriam ficar à margem da política, sobretudo em um governo onde impera a politicagem, com cargos distribuídos em profusão como agradinhos pelo comandante de Nárnia. Bolsonaro macula a imagem dos militares, aparelhando todo o Estado com militares, transformando-os em “milicos” a seu dispor.


A nós, que vivemos no reino fundamentado, só nos resta enfrentar, enquanto perdurar, os mandos e desmandos do governo Bolsonaro, com suas doses cavalares de negligência e negacionismo no auge de uma pandemia desenfreada e sem precedentes nos últimos cem anos. Até lá, vamos deixar de frescura, mimimi e encarar o vírus de frente, como homens. A vida continua – ou não! Quem viver, verá, porque Jair é Messias, mas não faz milagres. Palavras do Salvador da Pátria e seu verdadeiro dogma imposto em Nárnia às Avessas: Meus Filhos acima de tudo, Eu acima de todos!



Rosana Tonetti, brasileira, de São Paulo, é jornalista, com MBA em Gerenciamento de Projetos. Trabalhou em jornais como Estado de S. Paulo, Correio Braziliense e revistas da Editora Abril. Participou de vários projetos de comunicação corporativa e institucional. Atuou na Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom), Ministério do Trabalho e Previdência Social; Ministério da Educação; Controladoria Geral da União e Fundação Zerbini.


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