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sexta-feira, 25 de junho de 2021

A Alemanha de 33 e o Brasil de 21



Por José Eduardo Faria, professor titular da Faculdade de Direito da USP


exemplo de Hitler, que em maio de 1933 promoveu uma “limpeza” da literatura, estimulando seus seguidores a queimar em praça pública, em várias cidades alemãs, todos os livros que fossem críticos ao regime nazista ou não seguissem os padrões por ele impostos, o governo Bolsonaro está promovendo uma barbárie não muito diferente, ainda que seja em menor escala.


A iniciativa é da Fundação Palmares. Numa assumida cruzada ideológica, a instituição anunciou que excluirá metade de seu acervo bibliográfico. A justificativa apresentada por seu presidente, no relatório Retrato do acervo: a doutrina marxista, é que “todas as pessoas de bem” estariam “chocadas ao descobrir que uma instituição mantida com o dinheiro dos impostos, sob o pretexto de defender o negro, abriga, protege e louva um conjunto de obras pautadas pela revolução sexual, pela sexualização de crianças, pela bandidolatria e por um amplo material de estudo das revoluções e das técnicas de guerrilhas”.


A diferença com o ocorrido em maio de 1933 na Alemanha, principalmente nas cidades em que se situavam as principais universidades do país, é que os livros que a Fundação Palmares vai expurgar não serão reduzidos a cinzas. Serão doados – sabe-se lá para quem e com que critérios. Na miscelânia de autores a serem expurgados, entreabrindo a ignorância e a pervertida visão de mundo dos responsáveis por essa iniciativa, destacam-se, entre outros, Max Weber, H. Wells, Eric Hobsbawm, Antonio Gramsci, Simone de Beauvoir e Celso Furtado. São pensadores cujas obras são classificadas como “bizarrias” pelo relatório.


A Fundação Palmares anunciou que pretende preservar em seu acervo apenas os livros com temática negra, com exceção daqueles que são de autoria de “pretos racistas de esquerda”. Vinda de quem a escreveu e a pronunciou, negando os princípios da alteridade e pluralidade do mundo civilizado, esta é uma frase abjeta, que nos remete ao que dizia a filósofa Hannah Arendt há mais de meio de século, em Crises da República, um ensaio clássico sobre a violência e a mentira na política. “Só se pode confiar nas palavras quando se tem certeza de que a função delas é revelar e não dissimular”, afirmava. O que o presidente da Fundação Palmares quis dizer ao certo com essa frase? Qual foi sua real intenção – dissimular, mais do que revelar, seu próprio racismo? A estigmatização dos “pretos racistas de esquerda”, como técnica de desclassificação de quem não pensa como ele e como Bolsonaro, também remete a outra importante passagem de Hannah Arendt em um texto não menos clássico sobre a verdade na vida política. “O resultado de uma substituição coerente e total da verdade dos fatos por mentiras não é passarem estas a ser aceitas como verdade, e a verdade ser difamada como mentira, porém um processo de destruição do sentido mediante o qual nos orientamos no mundo real”, argumentava na obra Entre o passado e o futuro.


A semelhança com o que aconteceu na Alemanha há quase nove décadas, quando Stefan Zweig, Thomas Mann, Eric Maria Remarque, Bertolt Brecht, Alfred Kerr e Eric Kästner tiveram obras queimadas e/ou foram perseguidos, é tão preocupante quanto trágica e sombria. Batizada com o nome de Ato Nacional contra o Espírito Não Germânico, a queima de livros fez parte de uma estratégia do ministro alemão da Propaganda e do Esclarecimento Popular, Joseph Goebbels, para promover “a sincronização da cultura ariana” e reafirmar “os valores tradicionais alemães”.


Os atos, principalmente os que foram realizados em cidades alemãs com importantes universidades, tiveram ampla cobertura jornalística. Em Berlim, a incineração chegou até a ser transmitida “ao vivo” pelas emissoras de rádio. Esses atos foram justificados em nome da “necessidade de purificação radical da literatura alemã de elementos estranhos que possam alienar a cultura alemã”, como afirmou o dramaturgo alemão Hanns Johst (1890-1978), então integrante de uma das organizações de intelectuais formalmente aprovadas após a ascensão do nazismo ao poder.


Se na Alemanha a queima de livros antecedeu ao advento da censura política e à imposição de um rígido controle cultural por parte do regime nazista, no Brasil a iniciativa da Fundação Palmares foi precedida por uma série de medidas autocráticas tomadas pelo governo Bolsonaro. Elas vão das reiteradas afrontas morais por ele feitas à memória do educador Paulo Freire ao negacionismo científico, no caso da pandemia; do desmonte das agências de fomento à pesquisa à destruição progressiva da escola pública; da defesa da tradição ao desprezo pelo iluminismo; da depreciação à dúvida metódica dos intelectuais e dos professores ao apoio irrestrito a pastores que se valem de dogmas religiosos para dificultar o acesso dos setores sociais mais pobres e incultos às ideias do mundo moderno; da ofensiva contra a liberdade de pensamento e cátedra à tentativa de tipificar como “imoralidade administrativa” manifestações de discentes e docentes das universidades federais; da imposição de censura no Ipea à asfixia financeira do IBGE; da obsessão pela imposição de um filtro ideológico no Enem à proibição de que órgãos públicos publiquem estudos que “fragilizem sua imagem externa”; das sucessivas manifestações contra o Supremo Tribunal Federal à ruptura da disciplina e da hierarquia militar e à contaminação político-ideológica de oficiais de baixa patente.


A lista pode ser longa, mas tem lá sua coerência. São iniciativas que tentam minar garantias fundamentais e liberdades públicas e atrofiar os órgãos de controle institucional. São iniciativas que também tentam usar regras e procedimentos democráticos para corroer progressivamente o regime democrático – a exemplo do nazismo, uma vez que Hitler eleito e, uma vez no poder, destroçou o império da lei, acabou com a segurança jurídica, incendiou o Parlamento, disseminou o antissemitismo e promoveu o Holocausto, assassinando milhões de origem judaica.


Por isso, tão emblemático quanto a relação que se pode fazer entre a queima de livros em maio de 1993 e o expurgo de livros anunciado pelo presidente da Fundação Palmares é o caso do chefe da Secretaria Especial de Cultura, o dramaturgo Roberto Alvim. Em janeiro de 2020, ele não só fez um discurso com estética nazista, como também se apropriou de falas de Goebbels, ao afirmar que a cultura brasileira deveria ser “heroica, nacional e imperativa, ou então não será nada”.


O liame entre essa afirmação e o que diz o relatório da Fundação Palmares é nítido. “Assim como um livro exclusivamente sobre sistemas hidráulicos será excluído simplesmente por ser um livro sobre sistemas hidráulicos, os (livros) marxistas também serão. Porque, a rigor, tanto o marxismo quanto os sistemas hidráulicos nada têm a ver com o escopo da Palmares e com a cultura negra”, diz o texto. Trata-se de uma asneira, revelando que o autor pouco sabe de economia e de sociologia, nem conhece história. Essa asneira mostra, também, que ele não tem envergadura para se apresentar como porta-voz dos “cidadãos de bem” – seja lá o que entender por essa ambígua, perigosa e preconceituosa expressão. E ainda deixa margem a dúvida, no sentido de que ele talvez jamais tenha ouvido falar de um poeta alemão do século 18, Heinrich Heine (1797-1856), para quem “onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas”.


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