Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – As eleições de 2018 foram marcadas pelo protagonismo das redes sociais e das plataformas de mensagens, o que resultou em um “tsunami” de notícias falsas distribuídas em massa. Muito embora a divulgação de fake news em tempos eleitorais não seja exatamente uma novidade no Brasil, o volume, o modo como elas foram distribuídas – sobretudo via disparos de Whatsapp – e a enorme pressão sobre o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) são inéditos.
Essa é a conclusão do livro Fake News e eleições – estudo sociojurídico sobre política, comunicação digital e regulação no Brasil. Lançado este ano pela Editora Fi, e com versão on-line gratuita, o trabalho é resultado de um projeto de pesquisa sobre o direito à privacidade e o processo eleitoral brasileiro, apoiado pela FAPESP e realizado por pesquisadores da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP).
No trabalho, os pesquisadores analisaram a judicialização da distribuição de notícias falsas em massa nas eleições e mapearam os movimentos que o Judiciário adotou para lidar com o novo problema.
“Uma questão importante para a ocorrência desse tsunami de fake news está no fato de o pleito de 2018 ter sido o primeiro em que estava proibida a doação de empresas para as campanhas. O TSE decidiu isso em 2015 e a proibição foi aplicada pela primeira vez em 2018. Portanto, empresas, principalmente do lado da chapa vencedora, arrumaram outra forma de apoiá-la. Elas não doavam diretamente para a campanha, mas financiaram um esquema de comunicação paralelo baseado em discurso de ódio e desinformação”, diz Lucas Fucci Amato, livre-docente e professor do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da FD-USP.
Na pesquisa para o livro, os autores analisaram todas as decisões relacionadas com fake news no TSE a partir de 2018. “A maioria é decisão tomada por apenas um ministro e em regime de urgência, em geral favorecendo a liberdade de expressão, no sentido de que o eleitor acredita no que quiser. As poucas vezes em que o TSE teve a oportunidade de julgar de maneira colegiada [coletiva], por meio de ações de investigação eleitoral, ele chegou ao resultado de absolvição sob a justificativa de que é preciso investigar mais, de que faltam provas”, lembra.
De acordo com a lógica vigente, os eleitores e os candidatos são livres para passar as mensagens e a responsabilidade recai sobre o eleitor, que pode acreditar ou não no que está sendo dito. “No Brasil, principalmente, como as fake news estão muito concentradas no Whatsapp, isso cria um problema amplificado. As postagens do Facebook e do YouTube são públicas. Já no Whatsapp as mensagens são privadas, difíceis de rastrear. Por ser privado e massivo, gera um impacto ainda maior”, afirma.
O avanço da legislação
O pesquisador destaca que, embora a Justiça Eleitoral Brasileira tenha sido criada durante um regime de exceção (1932) e o Código Eleitoral vigente, elaborado em plena ditadura civil-militar (1965), ambos foram desenhados para atender a uma sociedade industrial de massas dominada por meios centralizados de comunicação – as empresas de mídia. Naquela época, não havia redes sociais e cabia quase que exclusivamente à imprensa escrita, ao rádio e à TV selecionar como e o que informar, gerenciando as novidades e as repetições da comunicação, observa o pesquisador.
“Já havia algumas normas, antes mesmo da eleição de 2018, que proibiam essa prática de comunicação paralela focada em desinformação, cujo intuito é prejudicar por calúnia e difamação a imagem de qualquer candidato. Mas a legislação não parou por aí; depois do que aconteceu em 2018, o Legislativo também tentou criar novos mecanismos”, conta.
Entre as leis mais recentes estão o dispositivo inserido em 2013 na Lei 9.504/97 (art. 57-H, §1º), que criminaliza a “contratação direta ou indireta de grupos de pessoas com a finalidade específica de emitir mensagens ou comentários na internet para ofender a honra ou denegrir a imagem de candidato, partido ou coligação”, e a Lei 13.834/2019, que incluiu no Código Eleitoral (no ano seguinte ao pleito de 2018) a tipificação do crime de denunciação caluniosa, incluindo a conduta de “quem comprovadamente ciente da inocência do denunciado e com finalidade eleitoral divulgar ou propalar, por qualquer meio ou forma, o ato ou fato que lhe foi falsamente atribuído” (art. 326-A, §3º).
“O problema é que essas leis aparentemente não estão sendo suficientes para inibir as práticas. Agora, o TSE instaurou novo inquérito para investigar os ataques de desinformação sobre a segurança das urnas eletrônicas. Porém, tudo isso ocorre em meio a muita pressão política, o que torna difícil dar prosseguimento a investigações e ao próprio julgamento”, afirma.
Funções da Justiça Eleitoral
O pesquisador lembra que a Justiça Eleitoral tem duas funções principais: a judicial e a administrativa, que organiza as eleições. “Observamos que a Justiça Eleitoral é lenta, tem muita precaução em condenar alguém. Mas, por outro lado, na organização das eleições, ela é efetiva, não existem esses vícios, nem a possibilidade de mudar o resultado das urnas. Nesse lado administrativo ela é competente”, avalia.
De acordo com Amato, há uma proposta de desenvolver um sistema de inteligência para funcionar nas próximas eleições, que permitiria processar uma denúncia de fake news. A ideia é criar uma espécie de fact-checking, em que a notícia falsa seja analisada, tenha as fontes checadas e, se necessário, um informativo seja liberado para combater a desinformação em tempo real.
“Esse é um desafio que estão tentando implantar pela função administrativa. Já na parte processual, é necessário que algum eleitor ou candidato que se sinta lesado entre com uma denúncia no tribunal. É improvável ter todo esse processo concluído antes do fim da disputa eleitoral”, diz.
Isso porque existe um problema relacionado com a diferença de timing entre a geração de fake news e a capacidade de investigação e julgamento da justiça. “Na questão eleitoral isso é ainda mais complicado. Para ter a possibilidade de incriminação, precisaria de uma investigação muito rápida, dentro do período de poucos meses das campanhas eleitorais. Até porque torna-se ainda mais difícil condenar um governo que já tomou posse”, ressalta.
O projeto de pesquisa foi desenvolvido por uma equipe jurídica interdisciplinar, integrada por especialistas em filosofia e sociologia jurídica. Entre eles estão Celso Campilongo, coordenador do projeto, professor titular e vice-diretor da FD-USP; Lucas Amato, da FD-USP; Marco Antonio Loschiavo Leme de Barros, professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie; e as doutorandas da FD-USP Diana Saba e Paula Ponce.
Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.
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