No outro dia, o “El Pais” publicou uma excelente crónica de Nuria Lamberi, com o título Uma vacina contra a tristeza. A cronista avisava que nunca houve tanta gente triste ao mesmo tempo: “desde o início da pandemia, a ansiedade e a depressão são quatro e três vezes mais frequentes em Espanha e os números são semelhantes no resto do mundo”.
É verdade. Calejados por outras pestes da História, deslumbrados pelo charme do admirável mundo novo (apesar das suas doenças congénitas: a fome, a pobreza, as desigualdades, as guerras…) parecia que o mundo, sobretudo o mundo rico chamado desenvolvido, estaria imune a esta desgraça coletiva, como se o poder do dinheiro comprasse paraísos perdidos onde o mal não penetrasse. Só que, agora, isto não é só para os outros – é para todos! E, como se fosse castigo que os deuses enviassem para castigar a impiedade dos homens e a sua desumanidade viral, eis as estirpes da pandemia a lembrar-nos, por exemplo, que um continente descartável, como a África, ainda existe. Quando, alegremente, julgávamos ter regressado à liberdade da relação social mais ampla, cai-nos em cima a notícia da variante Ómicron, com origem na África Austral. Dilatam-se, de novo, inquietações, confinamentos e ansiedades, os dias do nosso descontentamento.
Oiço a informação torrencial sobre os infernos da pandemia e volto a lembrar-me de Nuria e da sua reclamada urgência de uma vacina contra a tristeza, esse mal que parece vir do princípio do mundo. Françoise Sagan, de certo modo musa da “Nouvelle Vague”, escreveu em meados do século passado um romance que intitulou Bonjour Tristesse, um retrato da sociedade francesa do pós-guerra. Sintomaticamente, a novelista tinha-se inspirado em versos célebres de Paul Eluard (adieu tristesse/bonjour tristesse).
Se corrermos mais depressa as folhas do calendário, chegaremos por cá aos anos 60 e ouviremos na Praça da Canção, de Manuel Alegre, o poeta gritar: “é preciso matar esta tristeza”. Era, ao mesmo tempo, um grito contra séculos de submissão e de ausência de liberdade no país “vestido de grades” que, dizia ele, era “um vestido para todas as idades”. Oiço o poeta:
É preciso saber porque se é triste
é preciso dizer esta tristeza
que nós calamos tantas vezes mas existe
tão inútil em nós tão portuguesa.
Apesar disso, a sabedoria popular, sempre muito pragmática, ensina que “tristezas não pagam dívidas”. Então, na conjuntura fatal da nossa idade, procuremos a tal vacina contra a tristeza, uma vacina feita de mil remédios, sempre ao alcance da mão e dos olhos. Ler pode ser o melhor remédio. Abrir um livro – seja romance ou poesia – é a melhor forma de superar confinamentos, suprimir todas as fronteiras e viajar pelo mundo. Tanto assim é que Flaubert dizia “ler para viver” e Manguel, retomando a ideia, repetiu: “Não podemos senão ler. Ler quase tanto como respirar”.
Vemos, pois, que ler é viver. Mas são infinitas as possibilidades que a arte nos oferece para superar tempos maus. Ouvir Bach, Mozart, Beethoven, sei lá, tantos, é abrir hinos de alegria, o mesmo acontecendo com a emoção que provoca ver a grande pintura. Lembrem-se de um pintor chamado Goya! Outra receita contra a tristeza é saber olhar. A árvore e a floresta, a árvore centenária no meio da praça, a folha que balança e voa à boleia da brisa do outono. As cores das paisagens, os detalhes das velhas casas e das ruas, tudo matéria para guardar na memória e respirar melhor para matar a tristeza.
Fernando Paulouro, jornalista e escritor, é autor de vários livros, entre eles Fellini na Praça Velha (romance), Os Fantasmas Não Fazem a Barba (ficção, 2003), Os Olhos do Medo (conto, 2011), e A Materna Casa da Poesia. Foi chefe de Redacção e director do Jornal do Fundão. Pertence aos corpos sociais da Fundação Manuel Cargaleiro. Em 2013, foi-lhe atribuída a Medalha de Ouro da cidade do Fundão. Entre 2012 e 2016, fez parte do Conselho Geral da Universidade da Beira Interior. Foi distinguido em 2014 com o Prémio Gazeta de Mérito do Clube dos Jornalistas e em 2017 com o prémio ibérico Eduardo Lourenço. É autor do blogue Notícias do Bloqueio.
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