A propósito do abastecimento de Campina Grande com as águas do Rio São Francisco, artigo de João Suassuna
É fundamental, portanto, que se estabeleça clareza na forma de tratamento dos recursos hídricos nordestinos
Campina Grande, cidade de 638 mil habitantes em sua região metropolitana, localizada no Planalto da Borborema, distando, aproximadamente, 120 km da capital paraibana, é considerada a Rainha da Borborema. Principal cidade interiorana do estado da Paraíba, Campina se destaca pelo seu dinamismo econômico regional.
Apesar de ser considerado um dos mais promissores municípios nordestinos, vem carecendo, nos últimos anos, de abastecimento hídrico suficiente para manter o seu polo de desenvolvimento ativo. Falta água em Campina Grande!
A represa de Boqueirão de Cabaceiras, que provê a cidade e 18 municípios de seu entorno, não oferece a segurança hídrica necessária para atender às demandas dessa população.
A prova disso é o longo racionamento de água iniciado em 2014 e encerrado em 2016, que marcou e vem prejudicando o dia-a-dia dos moradores. Naquela ocasião, a população campinense deixava de receber água em suas torneiras durante 84 horas por semana. Um descaso total por parte dos responsáveis pelo setor, se levada em consideração a importância que tem Campina Grande para o desenvolvimento do Nordeste brasileiro.
Por que faltou água em Campina Grande?
O município de Campina Grande é abastecido pela represa de Boqueirão de Cabaceiras que, apesar de possuir uma expressiva capacidade de armazenamento (cerca de 466 milhões de m³) e de ter a importante missão de prover populações, vem tendo seu volume depreciado, ano a ano, devido à deficiente gestão hídrica posta em prática em sua bacia. A busca constante pelas águas desse reservatório é superior ao recomendado pelos preceitos hidrológicos da regularização de rios e, o consumo do precioso líquido, realizado sem os devidos cuidados.
A citada represa regulariza o alto curso do Rio Paraíba, com cerca de 1,23 m³/s, vazão 100% garantida, uma vez que a ANA concedeu outorga de 1,30 m³/s para esse aprovisionamento. No entanto, as suas águas vêm sendo utilizadas em volumes maiores do que os recomendados, em virtude da entrada no sistema de abastecimento de mais 10 municípios de seu entorno e também pelos seus usos na irrigação de uma área expressiva.
Para o aprovisionamento de Campina Grande foi estabelecido por técnicos especialistas do setor, já a algum tempo, a partir de Boqueirão, um bombeamento de cerca de 1 m³/s, volume esse que deveria ser, no mínimo, o dobro, uma vez que, em 15 anos, o número de municípios atendidos pelo reservatório passou de 8 para 18, totalizando, assim, uma população de cerca de 800 a um milhão de pessoas abastecidas por ele. Para o agravamento dessa situação, Boqueirão de Cabaceiras ainda passou a fornecer, a partir de junho de 2020, volumes para o atendimento de importantes projetos de irrigação no estado paraibano, a exemplo do ramal Acauã-Araçagi (atualmente cerca de 2,20 m³/s), parte integrante do sistema hídrico Vertente Litorânea do estado.
A partir desse pequeno relato, mesmo leigos em assunto hidrológicos podem perceber que, a conta hídrica na Paraíba, já começa a operar no vermelho.
Volumes do São Francisco interrompidos para Campina Grande
Entre 2014 e 2016, como já foi dito, Campina Grande passou por severo racionamento de água. Como a escassez hídrica na região era muito grave, as autoridades paraibanas passaram a transferir, então, em caráter emergencial, cerca de 9 m³/s das águas do Rio São Francisco para a represa de Boqueirão de Cabaceiras, via Eixo Leste do Projeto da Transposição.
Ao longo do citado Eixo, após o município de Monteiro (PB), existem dois açudes de médio porte, o de Poções, com 30 milhões de m³, e o de Camalaú, com 48 milhões de m³ de capacidade. Devido à escassez hídrica da região e visando agilizar o transporte volumétrico das águas em direção a Campina, o Governo estadual promoveu, na época, rasgos nos paredões daquelas represas a fim de elevar a capacidade de Boqueirão.
Uma vez cumpridos os objetivos estabelecidos, foram feitos os devidos reparos das paredes dos dois açudes e colocadas válvulas dispersoras, que permaneceram fechadas a fim de permitir o acúmulo de volumes suficientes para a regularização futura do rio Paraíba. No entanto, esse processo impediu o fluxo de água até Boqueirão.
As razões pelas quais as águas do Rio São Francisco não estão chegando ao seu destino final no Eixo Leste do Projeto
Temos circulado semanalmente nas redes sociais, boletins informativos de vazões do Rio São Francisco, bem como das capacidades das represas que fazem parte do projeto da Transposição, dentre elas as de Poções, Camalaú e Boqueirão de Cabaceiras, essa última sempre apresentando depreciação em seus volumes, devido aos descontroles no consumo de suas águas.
Atualmente, Boqueirão está com cerca de 20,41% de seu volume útil, Poções e Camalaú, com 75,20% e 49,04% de suas capacidades, respectivamente (22/04/2022). O percentual de Boqueirão vem caindo rapidamente, numa prova inequívoca de que as águas do São Francisco não estão afluindo para a represa.
A Terça do Crea realizada no dia 17/11/2020, tratou de como garantir os múltiplos usos da água em regiões com situações de escassez e crescente demanda. Nesse evento, o ex-Secretário de Recursos Hídricos do Estado de Pernambuco, Almir Cirilo, fez comentários acerca das razões pelas quais os fluxos das águas da Transposição foram parcialmente interrompidos para Campina Grande. Na ótica de Cirilo, a razão disso é a deficitária fluência das águas da bacia do Rio Paraíba a céu aberto, entre os municípios de Monteiro e Campina Grande, consequência direta das infiltrações, evaporação e outros aportes nas irrigações existentes naquele trecho.
Acrescente-se a isso o lançamento de elementos contaminantes (esgotos) e tem-se como resultado um desperdício volumétrico de grande monta (cerca de ¾ dos volumes bombeados do projeto para os campinenses). Ainda segundo o ex-Secretário, a solução desse problema depende de ações suplementares futuras, que envolvam o uso de tubulações adutoras, a exemplo do que vem sendo praticado no Ramal do Agreste, em Pernambuco, que abastece cerca de 2 milhões de pessoas, moradoras do entorno da bacia do Rio Ipojuca.
Segundo o ex-Secretário, água entubada não evapora e nem infiltra e garante que os volumes bombeados no início da adutora serão os mesmos que chegarão ao final do percurso.
Essas dificuldades aqui relatadas são as provas, mais do que claras, de que o projeto da Transposição do Rio São Francisco não resolveu, em sua totalidade, os problemas de abastecimento do Setentrional nordestino.
Muitas demandas para pouca oferta hídrica
São muitos os projetos aprovados na Paraíba e, mais recentemente, em Pernambuco visando o abastecimento de populações e uso produtivo das águas na agricultura, nos chamados perímetros irrigados. Para alcançar seus objetivos, o paraibano apostou todas as suas fichas nas águas do Rio São Francisco, acreditando na segurança hídrica que o rio, supostamente, proporcionaria em seu território, por intermédio do projeto da Transposição.
Seguem, abaixo, alguns exemplos de projetos em andamento, mostrando o quanto é ilusória a promessa da chegada das águas do Velho Chico ao estado paraibano:
1) O canal Acauã-Araçagi, já mencionado neste texto – projeto de R$ 1 bilhão de reais, considerado a maior obra hídrica dos últimos 30 anos na Paraíba.
O canal terá 112 km de extensão e garantirá água para 500 mil habitantes de 35 cidades, além da irrigação de 16 mil hectares de terras agricultáveis no Brejo paraibano. As águas serão bombeadas de Acauã, represa com capacidade de 253 milhões de m³, estando ela, atualmente, com volume útil de apenas 10,20% (22/04/2022), apesar do envio regular de 2,20 m³/s de água oriunda da represa de Boqueirão de Cabaceiras, como já citado anteriormente.
2) A aprovação recentemente, pelo governo da Paraíba, da Adutora do Cariri, projeto de R$ 400 milhões de reais, visando o reforço no abastecimento das regiões do Curimataú e Cariri do estado.
A tomada de água desse projeto é o açude de Poções, no município de Monteiro, pertencente ao circuito das águas da Transposição para Boqueirão de Cabaceiras. O citado açude se encontra, atualmente, com cerca de 75,20% de sua capacidade, não havendo informações sobre a defluência dessa represa em direção a Boqueirão, já que a liberação das águas do São Francisco foi interrompida no seu curso para Campina Grande.
Com a aprovação dessa adutora, as autoridades paraibanas não parecem demonstrar preocupação com a capacidade de o Rio São Francisco vir a suprir as demandas que não param de crescer naquela região do estado.
3) O agravamento da crise hídrica do país que apressou a conclusão do Ramal do Agreste em Pernambuco.
Inicialmente, os abastecimentos dos municípios da bacia do Ipojuca eram feitos por intermédio da Adutora do Moxotó, com retiradas volumétricas do Eixo Leste do projeto, de cerca de 0,45 m³/s. Para dar continuidade aos aprovisionamentos dos citados municípios foi estabelecida uma nova vazão de 8 m³/s, a partir da entrada, no complexo hídrico, do Ramal do Agreste.
A entrada do citado Ramal no sistema de abastecimento pernambucano, irá agravar sobremaneira o processo de concorrência hídrica que já existia entre os usuários das águas do Eixo Leste da Transposição, sendo esse, também, um dos fatores que influenciaram a interrupção das águas do projeto para Campina Grande.
Esse aspecto é facilmente explicável uma vez que o aludido Eixo recebe, diariamente, uma vazão oriunda da represa de Itaparica, de cerca de 9 m³/s, dos quais 8 m³/s são utilizados pelo sistema Adutor do Agreste pernambucano, para o abastecimento dos municípios localizados na bacia do Rio Ipojuca. Resta, portanto, apenas 1 m³/s para atendimento hídrico dos demais usuários das águas desse Eixo, dentre eles a represa de Boqueirão de Cabaceiras.
Diante do exposto, torna-se cada vez mais evidente que armaram uma bomba relógio na cidade de Campina Grande e no seu entorno, que irá detonar assim que o cenário hídrico volte a ser de escassez.
Alternativas para a solução do abastecimento de Campina Grande
Ficam evidentes, após o exposto neste relato, os graves problemas de gestão hídrica existentes atualmente no Eixo Leste da Transposição na Paraíba, principalmente nos projetos de abastecimento de Campina Grande, nos reforços do abastecimento do Canal Acauã/Araçagi e das regiões do Curimataú e do Cariri, todos beneficiários das águas do Projeto da Transposição do Rio São Francisco.
Para atendimento dessa demanda estão sendo bombeados, da represa de Itaparica, cerca de apenas 9 m³/s, volume muito aquém das necessidades existentes naquele percurso do projeto. Essa oferta de vazão vem sendo limitada, em boa parte, pelos bombeamentos existentes no Estado de Pernambuco, para o ramal do Agreste, conforme já citado nesse texto.
Para incremento da oferta hídrica aos paraibanos, seria necessário aumentar a vazão de bombeamento, a partir da represa de Itaparica, projetada inicialmente para retirar, do São Francisco, uma máxima de 28 m³/s, o que não vem sendo feito, uma vez que não há equipamentos suficientes para esse acréscimo na oferta de água aos paraibanos.
Outro aspecto que deve merecer atenção das autoridades no abastecimento de Campina Grande, é o aproveitamento dos volumes acumulados nas represas de Poções e Camalaú, atualmente estimados em 46,3 milhões de m³, sendo 22,4 milhões em Poções e 23,9 milhões em Camalaú, respectivamente (22/04/2022).
As referidas represas possuem válvulas dispersoras de volumes, que poderão ser acionadas, emergencialmente, em direção a Boqueirão de Cabaceira para amenizar o problema. É oportuno lembrar, contudo, que essa escolha colocará em risco a proposta de reforço hídrico nos abastecimentos das regiões do Curimataú e Cariri paraibanos.
Nesse sentido, será uma questão de escolha de prioridades, tendo em vista a falta de volumes nas citadas represas, para garantir o suprimento de todas as demandas existentes na região, inclusive a de Campina Grande, cujos índices de escassez hídrica estão sempre em patamares elevados.
Finalmente existe um fator merecedor de atenção, por parte dos usuários das águas do projeto da Transposição de um modo geral, alusivo às despesas futuras relativas à sua continuidade. Após a conclusão da Transposição em fevereiro último, o Governo Federal deu por encerrada as liberações mensais que fazia, de R$ 50 milhões (600 milhões anuais), referentes à manutenção do Projeto (despesas com energia entre outros encargos), que deverá ficar, doravante, sob a responsabilidade dos Estados nordestinos participantes da Transposição (Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará).
A pergunta que não quer calar é a seguinte: esses estados terão recursos financeiros suficientes para custear as despesas previstas no projeto? É provável que não, uma vez que a maioria deles passa atualmente por enormes dificuldades financeiras.
E ainda acrescento: enquanto o período chuvoso no Setentrional nordestino continuar promissor, da forma que vem se apresentando em 2022, o projeto da Transposição permanecerá no esquecimento, só voltando à baila após a ocorrência de novo período de estiagem na região. Tal situação, que sempre resulta em pânico geral nas autoridades e na população, mais uma vez, promoverá o surgimento de propostas e planos emergenciais para as soluções dos problemas.
É fundamental, portanto, que se estabeleça clareza na forma de tratamento dos recursos hídricos nordestinos, principalmente quando o vil metal está em jogo, a fim de se evitar o que vem acontecendo na realidade: um total descompromisso com os gastos do erário estadual no tratamento e implantação das políticas públicas para a região, principalmente no que concerne à capacidade de uso das fontes supridoras de demandas hídricas da população.
Nesse quesito o Rio São Francisco, lamentavelmente, tem se mostrado como um grande desconhecido. Portanto, é oportuno lembrar que a água é um bem natural finito, a sua busca deve ser empreendida com planejamento específico e, o seu uso, realizado com a parcimônia devida.
João Suassuna – Engenheiro Agrônomo, Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e Membro das Academias Pernambucana e Brasileira de Ciência Agronômica.
REFERÊNCIAS
AESA aumenta vazão das comportas do Açude de Boqueirão para atender Acauã e outros 11 municípios
Águas do Rio São Francisco chegam ao Rio Grande do Norte
http://www.suassuna.net.br/2022/02/aguas-dorio-sao-francisco-chegam-ao-rio.html
ANA autoriza abertura de comporta do açude Boqueirão para abastecer Acauã, PB
http://www.suassuna.net.br/2020/06/ana-autoriza-abertura-de-comporta.html
A situação “Hidro-ilógica” da Transposição do São Francisco – 22/04/2022
http://www.suassuna.net.br/2022/04/a-situacao-hidro-ilogica-do-sao_22.html
Blog de João Suassuna
Bolsonaro diz que vai concluir transposição do São Francisco ainda neste ano
http://www.suassuna.net.br/2022/02/bolsonarodiz-que-vai-concluir.html
Campina Grande (PB) a melhor cidade do Brasil
http://www.suassuna.net.br/2022/04/campinagrande-pb-melhor-cidade-do.html
Canal Acauã-Araçagi vai irrigar 16 mil hectares de terras agricultáveis
http://www.suassuna.net.br/2019/07/canal-acaua-aracagi-vai-irrigar-16-mil.html
Comportas do Açude de Boqueirão liberando 2 mil litros por segundo
https://www.youtube.com/watch?v=1MfcuITeOtY
Eixo Leste da Transposição do Rio São Francisco: as águas não estão chegando ao seu destino final
http://www.suassuna.net.br/2021/08/joaosuassuna-artigos-eixo-leste-da.html
Estado da Paraíba vai construir nova adutora no Cariri
http://www.suassuna.net.br/2022/03/estadovai-construir-nova-adutora-no.html
Governo Federal leva águas do Velho Chico para o agreste paraibano
http://www.suassuna.net.br/2022/05/governofederal-leva-aguas-do-velho.html
Líder do governo no senado assegura R$1,2 bilhão para a conclusão do Ramal do Agreste, da Transposição do São Francisco, em Pernambuco
http://www.suassuna.net.br/2019/12/lider-do-governo-no-senado-assegurar12.html
MPF constata lançamento de esgoto nas águas da transposição do rio São Francisco na Paraíba e cobra pagamento de conta de energia
http://www.suassuna.net.br/2022/05/mpfconstata-lancamento-de-esgoto-nas.html
NOVAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS DO AÇUDE EPITÁCIO PESSOA – A SECA 2012-2014
http://www.suassuna.net.br/2022/03/novas-consideracoes-sobre-gestao-dos.html
Obras nos açudes de Poções e Camalaú são retomadas, na Paraíba
http://www.suassuna.net.br/2018/04/obras-nos-acudes-de-pocoes-e-camalau.html
Presidente Bolsonaro inaugura nova etapa de Sistema do Pajeú e visita as obras do Ramal do Agreste, em Pernambuco
http://www.suassuna.net.br/2022/04/presidentebolsonaro-inaugura-nova-etapa.html
Problema de água no Nordeste não acaba com transposição
http://www.suassuna.net.br/2022/02/analiseproblema-de-agua-no-nordeste-nao.html
Racionamento de água completa dois anos em Campina Grande nesta terça
RAMAL DO AGRESTE inaugurado em 19/02/21
Situação volumétrica dos reservatórios das hidrelétricas da CHESF e da CEMIG – 22/04/2022
http://www.suassuna.net.br/2022/04/situacao-volumetrica-dos-reservatorios_22.html
Terça no Crea – Como garantir os múltiplos usos da água diante da escassez e crescente demanda
http://www.suassuna.net.br/2020/11/revitalizacao-de-bacias-terca-nocrea.html
2021: Projeto de Integração do Rio São Francisco vai levar cerca de 240 bilhões de litros de água para Paraíba, Pernambuco e Ceará
http://www.suassuna.net.br/2021/02/2021-projeto-de-integracao-do-riosao.html
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 13/05/2022
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