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segunda-feira, 17 de junho de 2024

Aborto é homicídio?



Por João Valença*


A Câmara dos Deputados está no epicentro de um embate acalorado e complexo sobre um tema que há décadas permeia os debates nacionais: o aborto.

Em uma votação que reflete a divisão profunda de opiniões no país, foi aprovada a urgência para votar o Projeto de Lei 1904/24, que busca equiparar o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio.

Esta medida, proposta pelo deputado Sóstenes Cavalcante e outros 32 parlamentares, desencadeou uma onda de reflexões sobre direitos individuais, ética médica e saúde pública.

A aprovação da urgência para o PL foi precedida por uma enquete no site da Câmara, em que a maioria dos participantes manifestou discordância total com a proposta. Os resultados da enquete, evidenciando uma disparidade de opiniões, refletem a complexidade do assunto e a sensibilidade que o envolve.

No cerne do debate estão questões profundas que tocam os valores mais íntimos da sociedade brasileira. Por um lado, há os defensores do projeto, que argumentam em prol da proteção da vida do feto em desenvolvimento. Para estes, um feto com 22 semanas de gestação já possui capacidade de sobreviver fora do útero materno, tornando o aborto após este período equiparável a um homicídio. No entanto, os críticos da medida alertam para suas possíveis consequências devastadoras.

Entre os opositores do projeto estão grupos de defesa dos direitos das mulheres, profissionais da saúde e ativistas que temem que a medida possa resultar na criminalização de mulheres em situações já delicadas. Argumentam que, ao equiparar o aborto tardio ao homicídio, o projeto poderia impor penas severas a mulheres que muitas vezes se encontram em situações de vulnerabilidade extrema. Além disso, a medida poderia impulsionar o aumento de procedimentos clandestinos e inseguros, colocando em risco a saúde e a vida das mulheres.

Os defensores dessa alteração legislativa argumentam que é crucial incluir os casos em que a lei atual já permite o aborto, como nos casos de estupro. Sob essa perspectiva, caso essa proposta seja aprovada, uma mulher que optar por um aborto após as 22 semanas de gestação, independentemente da motivação, seria responsabilizada por homicídio simples.

O que se pode perceber é que esse projeto de lei representa um retrocesso alarmante no que tange aos direitos das mulheres. Ao equiparar o aborto tardio ao homicídio simples, ignora-se completamente o contexto delicado e muitas vezes traumático em que algumas mulheres se encontram.

É essencial lembrar que o aborto é uma realidade complexa que não pode ser tratada com medidas punitivas, mas sim com políticas que garantam acesso à saúde reprodutiva e opções seguras para todas as mulheres.

A controvérsia sobre o aborto vai além das paredes do Congresso Nacional. Reflete as profundas divisões sociais e políticas do país, tocando em temas de direitos individuais, igualdade de gênero e saúde pública.

Todo esse debate em torno desse PL despertou a indignação de grande parte da população, especialmente as mulheres.  Equiparar o aborto tardio ao homicídio simples sugere uma visão distorcida de justiça, em que uma mulher que opta por interromper uma gravidez por razões pessoais ou médicas é tratada como uma criminosa.

Isso é especialmente perturbador porque não apenas ignora o contexto individual das mulheres, mas também estabelece uma desigualdade flagrante, na qual o agressor (o estuprador) pode enfrentar consequências menores do que a vítima (a mulher estuprada que decide pelo aborto).

Trata-se claramente de um projeto misógino, que busca criminalizar mulheres que decidem interromper uma gestação, inclusive decorrente de estupro. Essa legislação reflete uma mentalidade patriarcal que busca controlar e punir as mulheres por suas escolhas reprodutivas, ao invés de garantir seu direito à saúde e autonomia. Além disso, ao restringir o acesso seguro e legal ao aborto, ela coloca em risco a saúde e a vida das mulheres, incentivando práticas clandestinas e perigosas.

Ao invés de diminuir o número de abortos, políticas punitivas empurram as mulheres para situações de desespero e perigo, em que são forçadas a arriscar suas vidas em busca de soluções para uma gravidez indesejada ou perigosa. Isso é particularmente preocupante em contextos nos quais o acesso à educação sexual abrangente, contraceptivos e serviços de saúde reprodutiva é limitado.

À medida que o projeto avança no processo legislativo, o Brasil se encontra em uma encruzilhada moral e ética, na qual o desafio é encontrar um equilíbrio delicado entre a proteção da vida e a garantia dos direitos das mulheres. A criminalização do aborto não apenas falha em alcançar seus objetivos declarados, mas também agrava problemas de saúde pública e injustiças sociais.

Em vez de criminalizar, políticas eficazes devem focar em garantir acesso seguro, legal e acessível ao aborto, enquanto promovem educação sexual abrangente e opções contraceptivas para todas as mulheres. Isso não só protege a saúde e os direitos das mulheres, mas também contribui para sociedades mais justas e equitativas.

Dessa forma, em vez de adotar abordagens repressivas, é crucial que as políticas se concentrem em garantir acesso universal à educação sexual abrangente, contraceptivos e serviços de saúde reprodutiva. Isso não apenas protege os direitos das mulheres, mas também fortalece sociedades mais justas e equitativas, onde a saúde e a dignidade de todos são respeitadas.


*João Valença é advogado e cofundador do escritório VLV Advogados, referência na área criminal em todo o país.




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