Outra vez temos o prazer de conversar com Ana Karla Farias, jornalista, escritora e pesquisadora caicoense que acaba de lançar mais uma obra que promete impactar os estudos de cinema e literatura. Seu novo livro, intitulado "Do cine-ensaio à literatura: subjetividades à deriva em Agnès Varda e Clarice Lispector", é fruto de anos de pesquisa acadêmica e oferece uma análise inovadora das intersecções entre o trabalho da cineasta francesa Agnès Varda e da escritora ucraniano-brasileira Clarice Lispector.
O projeto, que combina cinema e literatura, propõe novas perspectivas sobre a subjetividade e o papel da mulher na arte. Publicado pela editora Mirada Janela Cultural, o livro está sendo viabilizado por uma campanha de financiamento coletivo. Nesta entrevista, Ana Karla compartilha detalhes sobre sua trajetória, suas inspirações, e o impacto que espera causar com essa importante contribuição ao campo dos estudos culturais.
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AC - O que a inspirou a explorar as intersecções entre Agnès Varda e Clarice Lispector em sua obra? Como surgiu a ideia de unir essas duas figuras em um único estudo?
Certo dia, resolvi assistir ao filme Cleo de 5 às 7 da Agnès Varda e, então, fui tomada por um sentimento epifânico, porque a personagem protagonista Cleo me remeteu às personagens clariceanas: mulheres em deslocamento, atravessadas pelo sentimento de não pertencimento a um lugar e a um papel social. Um ano antes de eclodir o cenário distópico da pandemia do novo coronavírus, eu já andava tateando a possibilidade de realizar um mestrado que conectasse minhas duas grandes paixões: o cinema e a literatura.
Após a experiência enriquecedora decorrente de uma especialização em Produção de documentário na UFRN, dediquei-me a amadurecer a ideia de realizar um estudo comparativo entre o cinema subjetivo da Agnès Varda e a literatura mais introspectiva da Clarice Lispector. Então, decidi apresentar trabalho no Congresso de Estudos Lispectorianos na UFPB onde conheci, por potência do acaso, o professor Fernando de Mendonça que leciona cinema e literatura na UFS e estudou no seu mestrado a obra clariceana Água viva em consonância com uma obra fílmica O ano passado em Marienbad do cineasta Alain Resnais. Varda costumava dizer que o acaso era um dos seus melhores assistentes, elucidando que a maioria dos seus filmes não apresentavam um roteiro fechado, porque ela gostava de incorporar os acidentes de percurso às narrativas. Por uma razão de acolhimento às poéticas do acaso, gosto de pensar que existe um fio invisível que entrelaça nossas vidas, de modo que algumas pessoas já nos foram reservadas por uma instância maior que escapa do nosso entendimento, como nos dizeres do escritor Guimarães Rosa “o que tem de ser, tem muita força”.
Durante a especialização na UFRN, uma colega que se tornara grande amiga, presenteou-me com um livro do professor Elinaldo Teixeira que viria a ser o meu orientador, aceitando em acolher a minha pesquisa sobre o ensaísmo em Varda e Lispector, no trânsito entre o cinema e a literatura. Com o intuito de analisar os recursos do processo de subjetivação, bem como as marcas de transgressão de gêneros/formatos e liberdade de criação característicos do pensamento ensaístico, presentes nas narrativas e estilísticas da cinescrita de Varda e da literatura de Lispector, optei por um itinerário metodológico que consistiu em um estudo comparativo da cinematografia de Varda e literatura de Lispector, a partir da investigação do diálogo entre o filme-ensaio de Varda, As Praias de Agnès (2008) e a obra claricieana, chamada de antilivro pela própria autora, Água Viva (1973).
AC - Quais são as principais contribuições de Agnès Varda para o cinema e de Clarice Lispector para a literatura que você destaca em seu livro? Como essas contribuições dialogam entre si?
São artistas multifacetadas que não cessaram de experimentar o processo criativo para produzir novas estilísticas, desviando-se de caminhos já trilhados. A liberdade de criação configura o valor maior das obras de ambas, que escapam de ser enquadradas em procedimentos convencionais das linguagens literária e cinematográfica. A Varda se denominava cinescritora por entender que se pode escrever com a câmera, já a Clarice Lispector não queria mais depender da palavra articulada e buscar o atrás do pensamento, o imagético, pulsações.
AC - Como foi o processo de pesquisa para este livro? Quais desafios você encontrou ao tentar conectar o cine-ensaio com a literatura?
Durante muito tempo, fiquei reticente quanto à pertinência da minha pesquisa por estar à deriva entre uma arte e outra e pela falta de estudos que contemplassem uma análise comparativa entre as duas artistas. Ao realizar uma revisão de literatura e estado da arte, notei que já havia muito arcabouço teórico acerca da literatura clariceana e alguns estudos sobre a cinematografia de Varda, mas estudos entrecruzando as obras de ambas era algo inédito.
Enquanto eu escrevia também me colocava à deriva entre uma margem e outra, assim como as personagens clariceanas e vardanianas. Era preciso me deslocar entre os Programas de Cinema e Literatura da Unicamp e de outras instituições, sobretudo, para decifrar os caminhos da escrita de Clarice. O que só foi possível em razão do financiamento da minha pesquisa pela Capes. Assim, pude pesquisar em acervos públicos, participar de congressos, estudar francês, uma vez que grande parte da fortuna crítica sobre Agnès Varda está no seu idioma de origem.
Durante o percurso da pesquisa e escrita, Varda e Lispector seguraram minha mão nas travessias doloridas de uma pesquisa solitária, que se iniciou em um momento atípico de pandemia. Como se um fio invisível nos conectasse, elas sussurravam em silêncio de dentro das páginas dos livros: Escreva, não desista! E então, como potiguar que passou a residir em Campinas, refiz caminhos da minha história, deixando para trás minha cidade, paisagens e pessoas que eu amava, em busca de materializar esse sonho que agora vai se metamorfosear em livro.
AC - Em sua opinião, qual é a importância de estudar a obra de mulheres como Varda e Lispector no contexto atual? Que impacto você espera que seu livro tenha para os estudos culturais e feministas?
Por muito tempo, as mulheres ficaram à margem da literatura, do cinema, das artes visuais considerados canônicos, a partir da década de 1990, há uma guinada subjetiva, sobretudo no cinema, a partir de novas combinatórias que surgem com o filme-ensaio e possibilitam que a mulher carregue seu corpo e sua voz para a própria obra. O que na literatura, a Conceição Evaristo denomina de escrevivências. Então, esta obra se faz importante porque lança o desafio de mostrar o quanto as narrativas dessas duas artistas mulheres, mesmo em âmbitos diferentes, podem se emaranhar a partir da dimensão ensaística, como também descortina as operações artísticas para trazer a público, a inscrição de si, dos seus corpos, da escritura de vida e das experiências das mulheres.
Espero que a obra funcione como um impulso para que mais mulheres escrevam e escrevam sobre mulheres, trazendo as nossas vivências para o espaço público da literatura, da história e do mundo.
AC - Para aqueles que não estão familiarizados com as obras de Varda e Lispector, por onde você recomendaria que começassem? Há algum filme ou livro específico que você acredita ser essencial?
Eu tenho percebido uma tendência positiva de popularização das obras de Lispector e Varda, que saem do rótulo circunscrito de herméticas e de acessíveis somente para um nicho intelectual. Clarice, inclusive, rejeitava o rótulo de hermética. Ela dizia que uma jovem estudante tinha A paixão segundo G.H. como livro de cabeceira e Varda construiu um cinema de afetos e acolhimento a grupos oriundos de um lugar social de invisibilização. Então, é importante evidenciar que as obras de ambas podem e devem ser apreciadas pelo público geral, de diferentes classes sociais e nível de escolaridade. Sugiro que os leitores e espectadores comecem pelas obras que mais lhes falarem ao coração e lhes transbordem.
Vou recomendar como obras essenciais as que pesquiso: Água viva de Clarice Lispector e As praias de Agnès de Varda, porque representam o ápice da experimentação da linguagem no fazer criativo de ambas, por questões estético-formais.
AC - A publicação do livro está sendo viabilizada através de uma campanha de financiamento coletivo. Como você vê a importância desse tipo de apoio para a literatura e o cinema independentes e como as pessoas podem ajudar para a publicação?
O crowdfunding cultural é cada vez mais buscado por artistas, escritores e realizadores independentes que precisam de uma força para financiar seus projetos. Com quase nenhuma burocracia, as plataformas de financiamento coletivo se tornaram uma forma para driblar a crise no setor e incentivar a continuidade da pluralidade e diversidade cultural existente no Brasil. Há muita gente talentosa criando e produzindo na contemporaneidade, que encontram impedimentos socioeconômicos para que seus projetos se materializem, então o financiamento coletivo é uma forma de democratizar o direito à fabulação, à arte e cultura e de não relegar esses artistas e pesquisadores ao anonimato e ostracismo.
Para viabilizar a publicação do livro, as pessoas podem apoiar através do link: https://benfeitoria.com/projeto/docineensaioaliteraturaagnesvardaeclaricelispector.
AC - Para finalizar, que mensagem você gostaria de deixar para os leitores e colaboradores que estão apoiando este projeto?
Eu deixo aqui o escrito do João Cabral que trata sobre a importância de agir e pensar coletivamente:
“Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro”.
Apoiem a obra de escritoras e pesquisadoras contemporâneas para que elas possam ter autonomia e dar continuidade aos seus trabalhos. Então, sempre que possível, leiam, comprem, deem de presente livros feitos por autoras da atualidade. É uma forma de apoiá-las.
Apoie o projeto AQUI
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