Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP
Desde que o Supremo Tribunal Federal começou a tomar as primeiras decisões condenatórias de vândalos e de criminosos que invadiram a Praça dos Três Poderes e depredaram o Palácio do Planalto, o plenário da Câmara dos Deputados e até mesmo o próprio plenário da corte, afrontando o regime democrático, articulistas reacionários e formadores de opinião simpatizantes da extrema direita ampliaram seus ataques ao Poder Judiciário.
Entre outras iniciativas, passaram a publicar na imprensa artigos nos quais afirmam que a ordem político-jurídica em vigor encontra-se em crise e que há um golpe em andamento destinado a instaurar no País uma ditadura da toga. Além disso, ao mesmo tempo em que acusam os tribunais superiores de terem se convertido em instrumento de ativismo judicial, também vitimizam a primeira leva de condenados por tentativa de golpe no dia 8 de janeiro de 2023.
Nesses artigos, eles recorrem a argumentos e propostas que pouco têm a ver com a democracia, com o império da lei e com a segurança jurídica. Por exemplo, no lugar de punições efetuadas com base no artigo 359, L, do Código Penal, que tipifica o delito de atentado violento ao Estado democrático de Direito, estabelecendo penas de reclusão que vão de quatro a oito anos e mais a pena correspondente à violência praticada para “impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais”, esses analistas beiram a candura. Deixando de lado argumentos dotados de um mínimo de lógica jurídica e de racionalidade normativa e ignorando a verdade dos fatos e relevando iniciativas que ferem a ordem legal, como a transmissão feita pelas redes sociais de um político e prefeito bolsonarista gaúcho que encenou a decapitação numa guilhotina de um dos 11 ministros do Supremo, esses articulistas e formadores de opinião propõem “diálogos honestos” entre julgadores e julgados.
A justificativa é que tais diálogos seriam o caminho mais adequado para solucionar conflitos. Todavia, em que medida quem defende um assassinato político de um integrante dos três Poderes, atingindo desse modo a democracia em seu âmago e afrontando a moralidade cívica, não é um candidato a autocrata? Que tipo de “honestidade” ele expressa? Que confiança e credibilidade esse pessoal transmite, para justificar a substituição de uma decisão judicial fundada na ordem constitucional por esse pretenso congraçamento “honesto”?
Esses articulistas, analistas e formadores de opinião pública defendem também uma liberdade de expressão absoluta, classificando como censura qualquer dispositivo legal destinado a conter discursos de ódio, incitações à violência, embustes ideológicos, manipulação de linguagens, pregações autoritárias e estímulos a golpes antidemocráticos. Surgida no final do século 20 e no começo do século 21 e marcada pelo avanço das redes sociais e da comunicação on-line, a era digital foi recebida não apenas como o fim de um período de uma comunicação de massa simplificadora e pasteurizadora, mas, igualmente, como o retorno do cidadão soberano. A ideia era que, quanto mais os cidadãos tivessem capacidade de ler, ouvir e aprender em decorrência do maior acesso a informações, menos vozes marginalizadas e alienadas haveria e mais a vida associativa poderia se expandir.
Com o passar do tempo, porém, a constatação foi de que essa percepção estava equivocada. Percebeu-se, então, que as redes de informação na era digital levaram ao paradoxo da desinformação, por causa do mau uso da liberdade de expressão. Na primeira década do século 20, mesma época em que surgiram importantes análises sobre os efeitos corrosivos de governos iliberais para as liberdades fundamentais, cientistas políticos apontaram para o fenômeno do “efeito de arrastamento” causado pela multiplicação de engodos na vida política. Quanto mais proliferassem preconceitos, chavões, discursos de ódio, pregações autoritárias, incitações à violência, narrativas passionais e estímulos a golpes antidemocráticos, disseram eles, mais rapidamente esses discursos, essas pregações, essas narrativas e esses estímulos se multiplicariam, alimentando-se reciprocamente. Quanto mais a comunicação em tempo real avançasse, maior seria a exclusão da autorreflexão no processo político.
Foi justamente o que acabou ocorrendo. A expansão da era digital abriu caminho para proliferação de mentiras e insultos por quem os transmite deliberadamente com objetivos políticos, causando um impacto devastador na democracia. Informações falsas suscitam desconfianças e dúvidas. Corroem a simetria da distribuição de informações entre atores políticos. Minam o caráter construtivo das diferenças ideológicas. Inibem a agregação das pessoas com base no interesse comum. Privatizam espaços públicos. E, por fim, substituem o embate entre adversários políticos que se respeitam pela oposição entre amigos e inimigos, como nos tempos do nazismo e do fascismo.
Num cenário preocupante como esse, a dúvida é se a democracia – um regime político que, com seu sistema de pesos e contrapesos, protege o pluralismo de valores e interesses, assegura a diversidade ideológica e neutraliza o perigo dos extremismos – teria condições de se adaptar à era digital, mantendo sua capacidade de suscitar expectativas, esperanças, alternativas e precauções, bem como de lidar com interpretações, promessas, frustrações, decepções, ressentimentos e pressões.
Nesse sentido, a atuação do Supremo, anunciando as primeiras condenações dos criminosos que praticaram o violento atentado ao Estado democrático de Direito em 8 de janeiro de 2023, revela uma espécie de revitalização democrática no País após a hecatombe de quatro anos de bolsonarismo à frente do Executivo. Apesar da imoderação nas decisões monocráticas e de eventuais fundamentos jurídicos polêmicos invocados por alguns ministros da corte ao justificar suas decisões, eles estão no caminho certo.
Ainda que a democracia seja um regime aberto a questionamentos, a controvérsias, a críticas e a exageros, o mesmo não pode ser dito sobre os articulistas reacionários e os formadores de opinião simpatizantes da extrema direita. Ao afirmarem e reafirmarem que há um golpe em andamento por parte do Judiciário, eles incorrem no pecado descrito por Hannah Arendt em seu clássico e brilhante livro sobre a banalidade do mal: a irreflexividade, ou seja, a incapacidade refletir sobre as perigosas consequências do que estão fazendo quando afirmam que o País já está vivendo sob a ditadura da toga.
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