Por Guilherme Ary Plonski, professor sênior da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP e do Instituto de Estudos Avançados da USP
É hoje dominante o entendimento da profecia como presságio feito por pessoas que são reputadas como capazes de enxergar acontecimentos futuros. O exemplar icônico dessa concepção no mundo ocidental é Michel de Nostradame (1503-1566), conhecido pelo cognome latino Nostradamus. Sua formação e trajetória são afetadas pelo clima da intolerância, ao nascer no seio de uma família neófita, que aceitara abjurar a fé judaica ancestral e ser batizada no credo católico. Ela o faz por conveniência e não por convicção, pois o batismo era o único expediente capaz de eximi-la do disposto no édito antissemita de Luis XII que, em 1498, expulsou da Provença todos os judeus ali residentes.
Essa regalia, contudo, não poupa os conversos de penalizações monetárias (o infame “imposto dos neófitos”) nem de discriminação social. O ambiente tóxico mobiliza em Nostradamus, ao longo de sua atuação como médico, farmacêutico e astrólogo, o temor de ser acusado de heresia pela Inquisição. O receio era fundado, uma vez que os agentes do Santo Ofício estavam permanentemente no encalço de presumidos renegadores do novo credo e, por extensão, à caça de oportunidades para confiscar os seus bens materiais.
Nostradamus se notabiliza pelo livro Les Prophéties, uma coleção de quase mil quadras poéticas, agrupadas em dez conjuntos, cada qual com cem estrofes de quatro versos (as Centúrias) que, supostamente, profetizariam eventos futuros. O tom dominante desses vaticínios é lúgubre, compreendendo desastres naturais e conflitos geopolíticos. Em particular, anteviam uma invasão iminente da Europa por forças muçulmanas lideradas pelo Anticristo a que alude o Novo Testamento. A influência de Nostradamus na cultura popular permanece até os dias atuais – comparecendo em incontáveis livros, filmes, peças de teatro, mangás, jogos eletrônicos e outras expressões artísticas.
Como seria de se esperar, previsões reais ou falsificadas de Nostradamus vêm sendo munição farta em guerras psicológicas e conflitos ideológicos. No século passado, por exemplo, folhetos com falsas quadras de Nostradamus prevendo a derrota da França foram espalhados por aviões alemães, servindo como instrumento da máquina de propaganda do regime nazista para aterrorizar populações europeias. E continuam sendo usadas no século 21, como ilustra a quadra, também atribuída falsamente a Nostradamus, viralizada na sequência do ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 que levou ao colapso trágico das torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York. “Profecias” de Nostradamus constituem, também, matéria-prima que fomenta a proliferação de conteúdos fajutos no ciberespaço e inspira malandragens e picaretagens em geral.
Ocorre que a natureza original da profecia não é a de predição do que fatalmente irá acontecer. Como descrito na Bíblia Hebraica, que dedica uma de suas três seções aos Profetas, a função destes é se manifestar publicamente, de forma enfática, incitando grupos humanos a mudar comportamentos que, se mantidos, levariam determinada sociedade a uma situação futura funesta. Para tanto, os profetas apontam falhas comportamentais coletivas e exortam a comunidade a retomar os modos de vida prescritos pela doutrina, assim evitando calamidades impendentes. Atuam também como animadores do povo, apregoando a perspectiva de superação dos efeitos de catástrofes ocorridas, apontando para cenários futuros promissores. Profetas também denunciam desvios de conduta moral de governantes, responsabilizando-os com uma incisividade vários tons acima do registrado nos relatórios de auditoria dos órgãos de controle contemporâneos.
De forma geral não é fácil a tarefa de profetizar, pois é preciso levar mensagens moralizadoras a quem habitualmente não quer ouvi-las. Nesse sentido, o profeta Ezequiel recebe o prévio aviso de que pregaria a um povo que, mesmo exilado por suas perversões, mantinha-se “de cabeça dura e coração obstinado”.
Um profeta não age motu proprio. Quando convocado por instância superior, ao profeta não é dado o direito de recusa ou de abstenção. Ilustra a inexorabilidade de levar a cabo uma missão profética a vívida descrição bíblica da desastrada e fútil tentativa de fuga do profeta Jonas, escondendo-se no porão de um navio. Ele havia sido chamado para alertar o povo de Nínive, a maior urbe do então Império Assírio e sua capital (situada no atual Iraque), de que “em quarenta dias a cidade seria subvertida”. Nesse caso singular, a tragédia é evitada pelo arrependimento coletivo e retorno dos habitantes de Nínive ao caminho do bem, o que leva à alteração do desígnio divino original.
Esse desfecho ilumina dramaticamente a natureza da profecia e a diferencia da predição a la Nostradamus. Na distinção essencial exposta pelo Lorde Rabino Jonathan Sacks, “Se uma previsão se torna realidade, ela teve sucesso. Se uma profecia se tornou realidade, ela falhou. Um profeta não prevê: ele avisa. Ele fala de algo que vai acontecer a menos que as pessoas se afastem do mal. Ele descreve um futuro para evitá-lo”. Para tanto, o dom essencial necessário a um profeta (ou a uma profetisa) não é ser vidente, mas ser falante – quer oralmente ou por intermédio de escritos.
O senso original de profecia está presente na obra 1984, da qual celebramos dois aniversários destacados neste ano de 2024. Não o aniversário de nascimento do autor, Eric Arthur Blair (1903), nem o do seu prematuro falecimento como George Orwell, pseudônimo pelo qual é conhecido e reverenciado (1950). Trata-se de festejar 75 anos de sua publicação, em 1949 e, o que é menos comum, comemorar quatro décadas do ano que intitula o livro. O termo “comemorar” é aqui usado em sua acepção mais profunda, que é “trazer à memória”.
Blair/Orwell vivencia intensamente as transformações que ocorrem na primeira metade século 20, em especial os confrontos ideológicos existenciais e os seus reflexos mortíferos, quer bélicos como genocidas. No início dos anos 1920 optara por seguir a tradição familiar de servir aos interesses imperiais britânicos, ao invés de cursar uma universidade. Todavia, renuncia à carreira estável de funcionário público após alguns anos de serviço na Birmânia, que era então parte do “império no qual o Sol nunca se punha”, e retorna à Inglaterra.
A busca de expiação da culpa que sentia pela segregação abjeta testemunhada durante a sua atuação nas colônias o faz residir em cortiços situados em bairros pobres de Londres e de Paris, convivendo com operários e mendigos. O seu engajamento contra o autoritarismo leva-o, nos anos 1930, a se alistar numa milícia marxista não-stalinista que integrava a aliança republicana na luta contra as hostes falangistas e seus aliados nazifascistas. A Guerra Civil Espanhola termina com a aliança derrotada e Blair ferido.
Essas experiências marcantes nutrem o seu pendor literário, levando à publicação de sucessivos romances, obras de não-ficção e artigos na imprensa. Ainda que com rótulos distintos, inicialmente de anarquismo e depois de socialismo, as ideias-força subjacentes à sua escrita são o anti-imperialismo e a repulsa visceral por regimes totalitários, como os que dominam a cena europeia em meados do século passado – nazismo, fascismo e stalinismo.
Este último totalitarismo é a inspiração para A Revolução dos Bichos (no original inglês, Animal Farm), uma das suas obras que se torna um clássico e campeão de vendas. Essa fábula política sobre o poder, baseada na história da Revolução Russa de 1917 e sua traição por Josef Stalin, descreve a insurreição dos animais de uma fazenda contra os seus donos. Progressivamente, porém, essa revolução degenera numa tirania ainda mais opressiva que a dos humanos. A máxima “Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que outros” reflete a ironia fina do autor.
Opus magnum de Blair/Orwell, 1984 é escrita nos anos finais da sua curta vida, já acometido pela tuberculose fatal. Essa distopia futurista, da qual milhões de cópias são publicadas, torna-se um dos romances mais influentes do século 20 e começo do presente. Delineia um Estado hiperautoritário, inspirado na União Soviética estalinista e na Alemanha nazista, com algumas tinturas do regime colonial britânico, e descreve a operação cotidiana de seus instrumentos básicos – a vigilância massiva e a lavagem cerebral coletiva, alcançada pela manipulação de fatos e relativização da verdade.
A obra cria termos que se consagram na linguagem popular. O Grande Irmão (tradução tosca do inglês Big Brother, que significa Irmão mais Velho) que “zela por você” introduz a memória das relações familiares íntimas como referência afetiva para a permanente vigilância das autoridades sobre todos os habitantes. Isso é feito mediante uso de teletelas (qualquer semelhança com o presente uso massificado de câmeras de vigilância na China e alhures não é mera coincidência). O regime totalitário introduz a novilíngua, um idioma fictício que, ao contrário do desenvolvimento natural pela criação de novas palavras, as altera ou remove, evitando assim a possibilidade do surgimento de ideias indesejáveis (na algo esquisita linguagem corrente, palavras são “canceladas” do vocabulário),
Mais sofisticado é o mecanismo do duplipensar, que é a capacidade de manter duas crenças contraditórias na mente ao mesmo tempo. Ademais, o governo totalitário tenciona controlar não apenas as expressões e as ações de seus cidadãos, mas também os seus pensamentos, concebendo para tanto a figura da crimideia. Winston Smith, o personagem central da obra, escreve em seu diário: “Crime de pensamento não acarreta morte: crime de pensamento é morte”. O temor de que governos totalitários institucionalizem o “pensamento errôneo” como transgressão punível explica a decisão de incluir a disposição “Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião” na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em dezembro de 1948 pela Organização das Nações Unidas.
Como muitos em sua geração, Blair é fortemente impactado pela Segunda Guerra Mundial, período calamitoso da história humana, responsável por um número estimado de 80 milhões de mortes, entre militares e civis. Preocupa-o o futuro do gênero humano pós-guerra, como indica o ensaio intitulado Você a bomba atômica, publicado na imprensa britânica em outubro de 1945, dois meses após os trágicos episódios de Hiroshima e Nagasaki. Nesse texto ele introduz pioneiramente a expressão guerra fria, que usa para descrever a nova configuração do mundo que (re)iniciava então um processo de polarização.
Há duas indagações sobre o título da mais marcante obra de Orwell. Uma é sobre a grafia do ano, se por extenso ou em numeral, havendo edições nos dois formatos. Segundo o autor: “Meu novo livro é uma Utopia em forma de romance. Eu o estraguei um pouco, em parte por estar tão doente enquanto o escrevia, mas acho que algumas das ideias nele podem interessá-lo. Ainda não fixamos definitivamente o título, mas acho que se chamará Nineteen Eighty-Four“.
A outra indagação, mais importante, é sobre a motivação da escolha do ano específico. Essa opção poderia sugerir que se tratava de um anúncio do que o escritor previa acontecer em 1984, algo que o aproximaria de Nostradamus. Longe disso, o livro é uma profecia no sentido original do termo. Segundo estudiosos da obra orwelliana, a escolha reflete mais uma vez o impacto existencial da antropotragédia que marca a sua geração. A Segunda Guerra Mundial começara em 1939, quando Blair tem 36 anos. O que ele pretendia com a utopia/distopia é alertar o mundo para um regime catastrófico que poderia acometer os nascidos em 1948, ano em que conclui a sua escrita, quando essas pessoas tiverem a mesma idade que ele tinha ao se iniciar a Guerra. [Uma dessas pessoas é o autor do presente artigo].
Orwell descreve o seu livro como uma “sátira”, ao mesmo tempo que afirma acreditar “que algo semelhante poderia acontecer” no mundo real. A oportuna obra A Era do Capitalismo de Vigilância, publicada pela professora Shoshana Zuboff exatos 70 anos após a edição de 1984, ratifica a manifestação do seu autor de que algo semelhante poderia suceder. Tão importante quanto a constatação, é o incitamento que nos faz o subtítulo do livro de Zuboff: A luta por um futuro humano na nova fronteira do poder.
A longevidade da copiosa referência à obra de Orwell expressa a preocupação com as crescentemente sofisticadas combinações de engenharia tecnológica e engenharia social, maquinadas por entidades privadas e organismos públicos, para moldar o pensamento coletivo. Sua contemporaneidade evoca o dito de Oscar Wilde segundo o qual “A literatura antecipa sempre a vida. Não a copia, molda-a aos seus desígnios”.
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