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quinta-feira, 14 de novembro de 2024

ARTIGO - Cid Moreira: curatela, injúria e deserdação



Por Laura Brito*


Há aproximadamente um mês o Brasil lamentou a morte de Cid Moreira, a voz mais icônica do jornalismo televisivo, aos 97 anos. Foram milhares de desejos de boa noite no Jornal Nacional e uma narração da Bíblia mais conhecida que o nome dos quatro evangelistas.

Mas, ao anunciar seu falecimento, mais que da sua carreira longeva e bem-sucedida, falou-se dos conflitos familiares e da deserdação de seus filhos. Entretanto, francamente, faltou esclarecer, para além do sensacionalismo, o que é deserdação no Brasil e como ela acontece. Precisa ficar claro que, hoje, é mais fácil aparecer no Jornal Nacional que deserdar um filho.

Cid Moreira teve, na realidade, três filhos. Do seu primeiro casamento, com Nelcy Moreira, ele teve Jaciara, que faleceu em 2020, aos 50 anos, de enfisema pulmonar. Ela foi mãe de Alexandre, falecido em 1996 em um acidente de carro. O apresentador deixou dois filhos vivos, Rodrigo e Roger Moreira. O primeiro, comerciante, é fruto do casamento de Cid com Olga Radenzev e o segundo, cabelereiro, foi adotado durante o relacionamento com Ulhiana Naumtchyk.

Rodrigo e Roger distribuíram contra o pai ações de abandono afetivo, que é uma espécie de medida judicial que visa a reparação de danos morais decorrentes do descumprimento do dever paterno de convivência com os filhos. Rodrigo alegava ter sido abandonado pelo pai desde a separação da mãe, aos dois anos de idade. Roger, por sua vez, afirmou que teria sido abandonado após ter revelado sua sexualidade aos quinze anos. Esse pedido é possível no Brasil, mas os valores são bem mais módicos do que a reparação em um milhão de reais pretendida pelos filhos do âncora. Ao final, eles não foram bem-sucedidos em seus pleitos.

Roger afirmou ainda que teria sido vítima constante de violência sexual por parte do pai ao longo dos anos em que conviveram. Da mesma forma, não alcançou o resultado que pretendia.

Em 2021, Rodrigo e Roger promoveram uma ação de curatela contra o pai, pois, segundo eles, Cid já estaria senil e Fátima, sua então esposa, estaria se aproveitando da circunstância para super medicá-lo e, com isso, fazer uma gestão fraudulenta de suas finanças. Moreira teria levado ao processo laudos de sua sanidade, além de ter demonstrado em entrevista judicial que estava em plena capacidade.

Feito esse apanhado de fatos, é essencial entender o que é deserdação no sistema brasileiro. A exclusão de um herdeiro necessário da herança é situação excepcional e se dá por dois caminhos. Primeiro, por indignidade, que decorre de uma sentença que atesta o comportamento do herdeiro que matar ou tentar matar o autor da herança ou seu familiar próximo, que acusar caluniosamente ou cometer crime contra a honra contra ele ou seu cônjuge ou companheiro ou que tentar impedir que o autor da herança faça seu testamento livremente. O caso mais conhecido no Brasil é o de Suzane von Richthofen.

A segunda forma de afastar da herança é a deserdação. Além dos motivos listados para a indignidade, a deserdação por acontecer por ofensa física, injúria grave, relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto e desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade. Mas a deserdação depende de um testamento, em que o testador declara, com detalhes, a causa da exclusão. Foi isso que Cid Moreira fez: lavrou um testamento em que declarou a deserdação dos filhos por o acusarem caluniosamente e por crimes contra a sua honra, partindo dos processos que os filhos promoveram contra ele.

Mas a deserdação não acontece automaticamente do testamento. Aqui está o componente complicador. Além da cláusula no testamento, é necessário um processo judicial a ser feito pelo herdeiro que se aproveita da exclusão, no qual ele terá que provar a veracidade da causa alegada pelo testador. Ou seja, Fátima, a viúva, terá que cuidar dessa ação, na qual Rodrigo e Roger terão o direito de se defender e tentar afastar os efeitos da deserdação. Ou seja, essa história não está nem perto de acabar.

Agora que já está claro como funciona uma deserdação, gostaria de propor algumas reflexões. Distribuir ação de abandono afetivo ou de curatela deveria, por si só, ser motivo de deserdação? Entendo que não, pois buscar reparação de danos contra um pai ou tentar demonstrar em juízo sua incapacidade não são necessariamente comportamentos indignos. Se assim entendêssemos, os filhos teriam receio de curatelar os pais quando necessário, por serem interpretados como golpistas. Nem mesmo o pedido de reparação por abandono é, isoladamente, razão para exclusão.

O problema é quando essas e outras medidas judiciais são caminhos para praticar crimes contra a honra, em especial a calúnia, em que o caluniante imputa falsamente a alguém a prática de um ato criminoso – no caso contra o pai e sua esposa. Aí, de fato, a intenção de desonra pode levar a uma quebra da dignidade que fundamenta a garantia da herança aos filhos.

Por fim, o que precisamos, como sociedade, é fazer uma reflexão sobre o que entendemos dos laços que nos unem como família e sobre as repercussões patrimoniais que esses vínculos devem ter – como liberdade, afeto, responsabilidade e patrimônio se entrelaçam? Assim poderemos decidir quais são as causas devidas de deserdação e se ela deve ser facilitada, dando ao autor da herança mais autonomia em relação aos seus bens.

*Laura Brito é advogada especialista em Direito de Família e das Sucessões, possui doutorado e mestrado pela USP e atua como professora em cursos de Pós-Graduação, além de ser palestrante, pesquisadora e autora de livros e artigos na área.


Sobre a Laura Brito Advocacia: fundada em 2015, em Belo Horizonte (MG), a Laura Brito Advocacia tem o propósito de atuar na solução de problemas jurídicos desencadeados das relações familiares e da transmissão do patrimônio. O escritório possui profunda experiência em questões de inventário, testamento, divórcio, união estável e curatela e é liderado pela advogada Laura Brito, especialista em Direito de Família e das Sucessões com doutorado e mestrado pela USP, professora em cursos de Pós-Graduação, palestrante, pesquisadora e autora de livros e artigos na área.

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