Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP
No mesmo dia em que a Folha de S. Paulo divulgou que 69% dos brasileiros entrevistados pelo Datafolha consideram a democracia como a melhor forma de governo para o país, os órgãos de comunicação anunciaram que, ao votar o Orçamento da União para 2025, num período de crise fiscal, de endividamento público sem controle efetivo e de inflação fora da meta, o Congresso aprovou mais um aumento do Fundo Partidário, cujos recursos são destinados ao funcionamento dos partidos políticos.
À primeira vista, esses dois fatos parecem convergentes. Se por um lado a população reconhece a importância da democracia enquanto governo da maioria, como regime do conflito institucionalizado e como continuidade das lutas políticas num mar de antagonismos, por outro, para que ela possa funcionar bem as agremiações partidárias necessitam de recursos para poder atender às demandas e expectativas do eleitorado de uma sociedade plural. Na prática, contudo, se examinarmos com maior atenção a atuação dos partidos e de seus líderes nos últimos anos e perguntarmos o quanto o Congresso é efetivamente representativo, veremos que as coisas não são bem assim.
Um dos motivos está nas distorções do sistema representativo no âmbito do federalismo brasileiro. Trata-se de um problema antigo, que foi agravado pela crescente criação de novos Estados nas regiões mais pobres, com baixo nível de educação e menos populosas do país. Nos anos 1960, por exemplo, foram criados os Estados do Acre e de Rondônia, o que assegurou à região Norte mais duas bancadas na Câmara dos deputados e mais seis vagas no Senado.
Na década seguinte, a ditadura dividiu Mato Grosso em dois Estados, o que assegurou mais uma bancada de deputados e mais três senadores para a região Centro-Oeste. Dois anos antes, o regime militar também já havia fundido os Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, fechando na região Sudeste – a mais populosa do país – uma bancada na Câmara e mais três vagas no Senado. A Constituinte aprofundou ainda mais o problema da falta de representatividade no âmbito do Legislativo, criando (i) os Estados do Amapá e Roraima, no Norte; (ii) o Estado de Tocantins, no Centro-Oeste, e concedendo ao Distrito Federal o direito à representação no Congresso.
O resultado foi este: com 43,7% da população brasileira, 42,5% do eleitorado nacional e 29,8% do PIB nacional, as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste tem 74% dos assentos no Senado e 50,1% dos assentos na Câmara dos Deputados. Com 56,3% da população brasileira, 57% do eleitorado e 70,2% do PIB, as regiões Sudeste e Sul têm apenas 26% dos assentos no Senado e 49,9% dos assentos na Câmara. Como a aprovação de uma emenda na Constituição exige duas votações na Câmara e outras duas votações no Senado e o quórum para aprovação é de 3/5 em cada uma delas, os políticos da região Norte – que têm entre 5% e 6% do eleitorado brasileiro, mas controlam 22,3% da representação no Congresso – na prática detêm poder de veto e um imenso poder sobre o Orçamento da União.
É isso que explica, por exemplo, a força das bancadas dessas três regiões nas votações das Propostas de Emenda Constitucional (PECs), no desrespeito aos requisitos de transparência, publicidade, rastreabilidade e eficácia na destinação dos valores e na condução com base em interesses espúrios nas sabatinas daqueles que irão integrar agências reguladoras para assegurar a qualidade dos serviços públicos. Decorre daí, igualmente, a força política e o poder dos controladores de currais eleitorais, dos donos de feudos controlados por diversas facções partidárias, dos coronéis locais e dos oligarcas regionais nas votações de interesse nacional. Para que projetos destinados a assegurar a governabilidade de todo o país, é preciso que os responsáveis pelo Poder Executivo primeiro negociem favores com líderes que, em sua maioria, destacam-se mais por suas folhas corridas do que por suas biografias.
O loteamento de cargos típicos da burocracia estatal entre agremiações partidárias, a subsequente desprofissionalização dos quadros administrativos, a substituição das emendas orçamentárias autorizativas por emendas orçamentárias impositivas pouco transparentes, a pulverização de recursos governamentais em obras paroquiais e regionais sem vínculos com programas orçamentários estruturantes de alcance nacional e a distribuição de cargos técnicos para apaniguados, pressionando governos a seguirem políticas insensatas e contrárias aos seus próprios interesses e ao eleitorado que os elegeu, constituem uma das facetas das distorções representativas da democracia brasileira.
A captura da condução da gestão pública pelo Congresso, o que leva a uma subsequente perda da organicidade dos programas do governo central governamentais e retira da máquina administrativa da União a força necessária para enfrentar os ajustes das contas públicas, para fixar objetivos, metas e diretrizes, para projetar obras estruturantes e para formular estratégias de médio e longo prazo para o país como um todo, é outra faceta.
Como se vê, as informações de que 69% dos eleitores apoiam a democracia, por um lado, e de que o Congresso aumentou ainda mais o fundo partidário, por outro lado, não são convergentes. São colidentes. Em razão dos vícios do sistema partidário e representativo vigente no país, desde que o fisiologismo parlamentar se aproveitou do chamado presidencialismo de coalizão para abarcar o orçamento público, os valores político-ideológicos e a ideia de responsabilidade parecem ter sido perdidos.
O mesmo ocorreu com a noção de planejamento e com a percepção de que todo projeto nacional de longo alcance exige não apenas um rol de condições mínimas indispensáveis, mas, igualmente, a própria regeneração do poder público. A democracia imaginada por 69% dos brasileiros que foram ouvidos pelo Datafolha, os quais valorizam representatividade e interesse público como os princípios básicos desse regime político, pouco tem a ver com aquela democracia invocada por deputados e senadores que quem pensam apenas em aumentar o fundo partidário e abocanhar emendas orçamentárias para se reeleger infinitamente. Nesse contexto, quando a sociedade brasileira conseguirá ser efetivamente dona de seu futuro?
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