Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Por Maria Paula Dallari Bucci, professora da Faculdade de Direito (FD) da USP - Jornal da USP
A agenda da segurança pública cidadã começa a se mover no Brasil. Trata-se de um tema carregado de disputas ideológicas, que não têm gerado soluções. O discurso do campo conservador pelo aumento de penas e de violência policial não tem reduzido a criminalidade, ao contrário, tem provocado aumento de mortes, com destaque para o Estado de São Paulo. As contribuições do campo progressista, especialmente denúncias e análises críticas, por sua vez, também não têm sido suficientes para a formulação de políticas públicas capazes de equacionar o problema; não basta relatar o inferno de Dante, é preciso engenho para construir o caminho de saída dele.
A política pública mais importante para a matéria, a julgar pelas experiências que fizeram o Brasil avançar nos campos da saúde, assistência social e educação, é o Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Embora ele tenha sido instituído pela Lei n. 13.675/2018, ainda carece de uma estruturação que lhe dê condições de evoluir como política de Estado. Esse não é um adorno retórico; qualificar uma política assim é entender que ela ganhou condições de continuidade, na medida em que passou a ser reconhecida como tal pelas várias forças políticas do espectro eleitoral. Quem diz que uma política é de Estado não é quem a institui, mas quem tem o potencial de suceder o seu instituidor, na alternância de poder típica da democracia, e seguir os rumos definidos naquela política.
A continuidade das políticas do Sistema Único de Saúde foi construída ao longo de sucessivas gestões governamentais, nos vários níveis federativos, envolvendo adversários políticos, que, uma vez na gestão, decidiram seguir os caminhos de ação traçados por seus antecessores. Isso se deveu não apenas à sua racionalidade administrativa, mas à pactuação política, que deu peso à formulação técnica e, mais do que isso, soube compatibilizá-la com as formas de legitimação próprias do processo político-eleitoral. No campo da educação, essa continuidade foi alcançada quando prefeitos e governadores passaram a ter interesse em anunciar a melhoria dos Idebs (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) respectivos, não apenas em virtude do acesso aos incentivos financeiros da legislação do Fundeb (Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica), mas principalmente do reconhecimento da população e prestígio político. Fenômeno similar se deu no campo da assistência social, em que as qualidades do programa Bolsa Família provocaram o aumento de seu valor político a cada nova gestão, e assim contribuíram para a estruturação e permanência do Sistema Único de Assistência Social (Suas).
A segurança pública carece de uma premissa determinante nessas áreas, que é a sustentação em um movimento social. Se o movimento da reforma sanitária vinha preparando as diretrizes do capítulo da saúde na Constituição vários anos antes – pelo menos desde a 8ª Conferência Nacional de Saúde, de 1986 – não há mecanismo similar para a segurança pública; ao contrário, o artigo 144 da Constituição foi um retrocesso em relação à modernização que ocorria na área penal à época da Constituinte. E mesmo com todo esse apoio, o SUS levou cerca de uma década para se estruturar, o que ocorreu graças à criação de práticas de compartilhamento de gestão, sedimentadas em normas operacionais básicas.
Portanto, a partir dessas experiências, a estruturação do Sistema Único de Segurança Pública, com o equacionamento das questões federativas que emergem do desenho constitucional em vigor, superando a atuação fragmentada na área, é o maior desafio. Em que pese a expectativa de que a União apresente resultados, implementar o sistema é condição necessária para esses e é dela que as demais dependem para gerar resultados a longo prazo.
Seria um equívoco o governo federal propor normas para problemas amplos, complexos e díspares como as facções do crime organizado, a corrupção e a partidarização das polícias, e tantos outros temas urgentes. Não se tratando de um projeto acadêmico, o mais provável seria que elas estacionassem nas primeiras comissões no processo legislativo. Outra conjectura irreal seria a União pretender usar a PEC para submeter os governadores do campo conservador à sua visão de segurança pública. Se amanhã o Brasil elegesse um presidente reacionário, ficaria evidente o erro de abrir mão do equilíbrio federativo. O que vem dando certo no SUS e no Suas é a cooperação federativa que resulta de uma cultura de trabalho compartilhado, a partir da identificação de temas de consenso possível. E no campo da segurança pública, essa visão não deixa de estar presente no discurso da oposição, mesmo quando aparentemente crítico, ao invocar a importância da integração.
As medidas anunciadas pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública no mês de janeiro caminham nessa direção. A nova versão da PEC deixou mais claras as formas de cooperação federativa, reforçando a lógica de gestão compartilhada do Susp e eliminando disposições que poderiam levar ao questionamento de sua constitucionalidade. Além disso, passou a prever importantes salvaguardas da cidadania, como as corregedorias e ouvidorias autônomas.
O conjunto de portarias editadas na mesma data organiza rotinas de trabalho no âmbito do sistema, o que deve contribuir para estabelecer o Susp de forma incremental na prática, diminuindo as resistências que ainda existem. Uma das portarias institui o Comitê Nacional de Monitoramento do Uso da Força, integrado por autoridades federais e por representantes do Conselho Nacional dos Comandantes Gerais de Polícias Militares, do Conselho Nacional de Chefes de Polícia Civil e dos Comandantes das Guardas Municipais, além de representantes da sociedade civil (Portaria MJSP n. 856/2025). Essa instância acompanhará a aplicação dos parâmetros estabelecidos no Decreto n. 12.341/2024 e na Portaria n. 855/2025, para os órgãos federais ou que utilizem recursos dos Fundos Nacionais da Segurança Pública ou Penitenciário, seguindo procedimento usual em políticas públicas nacionais.
A criação do Núcleo Estratégico de Combate ao Crime Organizado pela terceira portaria (Portaria MJSP n. 857/2025) também tem esse caráter ordenador. Assim como as demais, mesmo que venha a ser eventualmente aprimorada, tem o mérito de fixar balizas que favorecerão o estado de direito em uma atividade em que ele luta para se estabelecer. Não é um excesso normativo, mas a regulamentação ordenadora necessária para preencher vazios e definir parâmetros que organizam a atividade policial, proporcionando referências objetivas para aplicação da lei.
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