Foto: Reprodução José Cruz/Agência Brasil
Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP
Dias depois de os novos presidentes das duas casas legislativas terem se mostrado favoráveis à PEC do semipresidencialismo, sob a alegação de que o Legislativo e o Executivo devem agir em conjunto para assegurar a estabilidade política no País, o Senado aprovou – por 60 votos contra 1 – um projeto de lei complementar que preserva verbas do orçamento secreto e de outras emendas parlamentares impositivas. Segundo o relator da proposta, o impacto financeiro dessa iniciativa para o Tesouro Nacional será de R$ 4,6 bilhões. Já o presidente do Senado estimou que esse valor será três vezes maior – cerca de R$ 15,7 bilhões.
Ao justificar essa iniciativa, os senadores afirmaram que essas verbas são relativas a exercícios anteriores e não foram repassadas até hoje por causa da burocracia da máquina governamental. E como o Palácio do Planalto se recusou a repassá-las por meio de um simples decreto, o Legislativo teria cumprido seu papel de legislar, propondo essa lei complementar com o objetivo de viabilizar recursos para obras importantes de desejo dos parlamentares, afirmou o presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Semanas antes, ele já havia dito que “fortalecer os municípios é dar a cada cidadão o direito à cidade, que é onde se constrói a cidadania”.
No entanto, visto com o devido rigor, a ênfase ao fortalecimento do município – no âmbito de um país de dimensões continentais que tem 5.571 cidades pequenas, cidades médias e grandes cidades conurbadas situadas em regiões com características distintas, segundo o IBGE – é muito mais um palavreado oportunista e de ocasião do que algo substantivo e consistente. Por quais motivos?
Pelo menos três merecem destaque.
Em primeiro lugar, em um país com essas enormes heterogeneidades como é o caso do Brasil, o localismo não é a espacialidade própria da nação. Até a metade da década de 2010, quando o Executivo federal tinha a prerrogativa de pagar ou não pagar as emendas parlamentares autorizadas pelo Orçamento da União, muitos economistas afirmavam que a governabilidade era prejudicada pela propensão do governo federal de gerir o país de modo hegemônico, valendo-se das composições propiciadas pelo presidencialismo de coalisão para governar, neutralizando assim as pressões dos partidos de oposição. À época, esse argumento fazia sentido.
No entanto, a partir do momento em que o Congresso aprovou a Proposta de Emenda Constitucional que tornou as emendas parlamentares impositivas após serem aprovadas no Orçamento da União, por volta de 2015, muitos economistas passaram a mostrar, com números, que o aumento do poder de barganha do Legislativo frente ao Executivo distorceu o presidencialismo e enfraqueceu financeiramente a União, dada a multiplicação de emendas parlamentares impositivas destinando recursos às suas bases. Também mostraram que um dos efeitos desse enfraquecimento é que ele tende a corroer o pacto federativo consagrado pela Constituição, na medida em que agrava o desequilíbrio entre os entes subnacionais heterogêneos e os entes nacionais, ao mesmo tempo em que dificulta uma gestão mais racional e técnica do Orçamento da União. Atualmente, a Câmara e o Senado já controlam cerca de 24% das despesas discricionárias do Executivo – controle esse que, quanto mais for aumentado, como almejam os deputados e senadores, mais tenderá a corroer o princípio da separação de Poderes.
Em segundo lugar, a própria representatividade do Congresso é questionável. As regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, por exemplo, que têm 42,5% do eleitorado e 43,7% da população brasileira, detêm 74% dos assentos no Senado e 50,1% na Câmara. Em que medida pode ser efetivamente legítimo um regime democrático com enormes vícios de representação parlamentar como mostram esses números extraídos do IBGE?
Em terceiro lugar, nessa estrutura político-federativa viciada os recursos das emendas parlamentares tendem a ser gastos sem a definição de objetivos claros e precisos em termos de custo e benefício. Por um lado, a opacidade permite aos deputados e senadores se reeleger com maior facilidade, drenando recursos de seus críticos, esvaziando aspirações de seus adversários e passando como rolo compressor sobre seus rivais em suas bases eleitorais. Por outro, ela também não resulta necessariamente na modernização da governança local a partir de políticas públicas bem planejadas, bem implementadas e bem executadas, seja na maioria das cidades pequenas ou mesmo em algumas cidades de porte médio.
Tudo isso entreabre um federalismo pouco eficiente, dificultando a formulação de um projeto nacional de longo alcance capaz de catalisar valores e anseios e levando a um retrocesso da própria democracia representativa. Quanto mais parlamentares abocanham verbas federais para atender a interesses meramente paroquiais, eleitorais, cartoriais e corporativos, verbas essas muitas vezes destinadas sem um mínimo de transparência, de publicidade e de rastreabilidade, menos recursos sobram para o financiamento de obras estruturantes voltadas à redução das distorções regionais e sociais do País e maior é a tendência de o Supremo Tribunal Federal ser chamado para intervir nessa discussão.
A retórica recorrente da maioria esmagadora dos senadores e deputados federais é no sentido de que “os burocratas da União não gastam sola de sapato percorrendo os municípios do País”. O problema desse argumento é que a pulverização dos recursos federais tende a privilegiar basicamente os interesses locais desses parlamentares. O que, por consequência, dificulta a emergência de uma estrutura de serviços públicos neutra, eficiente e profissional, uma vez que muitos de seus chefes são escolhidos não necessariamente por sua qualificação técnica mas, sim, por sua cega lealdade aos mandantes locais.
O que se tem aí é, em muitos casos, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, um localismo ultrapassado e avesso a mudanças estruturais. Ou seja, algo como um coronelismo revivido por meio de novas tecnologias de comunicação e de manipulação de uma máquina municipal convertida em redutos eleitorais, cujo controle vai passando de geração em geração de determinadas famílias, como se pode ver no perfil dos novos presidentes da Câmara, Hugo Mota, e do Senado, David Alcolumbre.
Trata-se, assim, de um cenário em que o poder de agenda da União em matéria de políticas que propiciem o avanço do País, por um lado, e a autonomia que o sistema de planejamento estratégico da União necessita para operar com racionalidade e consistência técnica, por outro, estão sendo esvaziados. Este é um cenário em que o sistema de competências concorrentes na oferta de serviços essenciais previstos pela Constituição – em áreas como saúde, educação, assistência social e segurança pública, por exemplo – vem sendo posto em xeque e em que os próprios órgãos fiscalizadores vêm sendo capturados, com o subsequente esvaziamento do conceito de interesse público e de desprezo à modernização institucional.
Acima de tudo, é um cenário em que a diluição das fronteiras entre políticas de Estado, de longa maturação, e políticas de governo (que têm a durabilidade de apenas um ou dois mandatos) leva o País a perder as noções de prioridade, de estratégia e de sentido do progresso, dificultando assim a visão de futuro das novas gerações.
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