Entre a UTI e o Trio: Retrato Moral do Eleitor-Folião - Blog A CRÍTICA

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quarta-feira, 9 de abril de 2025

Entre a UTI e o Trio: Retrato Moral do Eleitor-Folião

Leitos de UTI neonatal em Araripina - Foto: Divulgação SES-PE


Diante da tragédia da criança recém-nascida que morreu à espera de um leito de UTI — enquanto as máquinas de som testavam os decibéis da festa seguinte —, vem a este escriba um pensamento que nem é novo, mas teima em doer como se o fosse: a culpa, senhores, não mora apenas nos gabinetes.


Sim, os governantes são ineficientes, vaidosos, amantes do pálio e da pompa, inimigos da planilha e da decência. Mas governam, é verdade, com a permissão dos que os aplaudem entre um copo de cerveja e um selfie na avenida. O povo, que de tão bajulado se acostumou a ser chamado de “sofredor”, também gosta do colo. Gosta tanto que, por vezes, o toma por anestesia.


Há, por estas bandas, uma cultura do "coitadismo", essa tendência do brasileiro a se dizer sempre vítima, ainda quando é algoz de si mesmo. O demagogo sabe disso. Afaga com festas, promete com shows e, entre um “viva o padroeiro” e um “toca Safadão”, empurra o povo de volta ao berço da inconsciência.


Em Caicó, a cidade que se orgulha do bordado e da feirinha, mas não se envergonha da fila da regulação, a manipulação política se faz com sanfona, luzes e abadás. E, convenhamos, quem troca o voto por um camarote é sócio do desgoverno. É o idiota no sentido clássico da palavra — aquele de Atenas, que não se interessava pela pólis, preferindo o prazer privado à virtude pública.


O idiota de hoje não é aquele que ignora os livros, mas o que ignora a própria dignidade. Ri quando deveria protestar. Pula quando deveria pensar. E no dia seguinte, de ressaca, mal se lembra da criança que morreu no hospital fechado, sem médico, sem UTI, sem voz.


A sociedade civil morreu — ou dorme, embriagada de forró e desilusão. Ninguém se organiza para fiscalizar, só se junta para “curtir”. Há mais conselhos de festas do que de saúde. Mais preocupação com a grade do carnaval do que com a escala de plantão no pronto-socorro.


Não há tragédia mais perfeita do que aquela que todos ajudaram a construir. O prefeito que cortou o orçamento da saúde para contratar artista é culpado. Mas também o eleitor que o reelegeu, por gostar da festa. A senhora que bate panela pela vacina, mas cala-se quando a verba vai para o palco. O rapaz que diz "Deus me livre política" e passa a vida sendo governado por quem tem sede de palco e aversão à responsabilidade.


Sim, caro leitor, quem se vende por festas é cúmplice. A criança que morreu não teve UTI — mas teve fogos, teve trio, teve multidão. Morreu sob o silêncio dos que não quiseram ver.


E talvez, como em toda boa comédia trágica, morra de novo. Porque amanhã tem show.

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