Quando Jesus de Nazaré caminha sobre a Terra, a Palestina já havia sido subjugada pela expansão helênica de Alexandre, o Grande, há cerca de três séculos. Nesse lapso de tempo, o solo sagrado do judaísmo estava imerso num caldeirão cultural onde a língua, a estética e, sobretudo, o espírito da filosofia grega pairavam no ar — mesmo que os judeus, por fidelidade à revelação e à Lei mosaica, não adotassem formalmente a práxis filosófica como forma de vida. Ainda assim, como que por uma transfiguração espontânea do logos, é no seio dessa tensão entre cultura grega e religião hebraica que surge o Nazareno, não apenas como um reformador religioso, mas como um mestre universal do espírito.
Assim como Sócrates foi condenado por Atenas por introduzir um “novo daimon” e corromper a juventude com sua maiêutica inquiridora, Jesus confronta os poderes religiosos de seu tempo com a autoridade de quem fala “como quem tem poder” — não poder institucional, mas aquele que provém da verdade vivida. Ambos se situam no limiar entre a fidelidade a uma tradição e a coragem de superá-la. Ambos foram traídos por seus discípulos, julgados pelas autoridades e executados como criminosos, não por blasfêmia ou impiedade apenas, mas por ameaçarem a estabilidade do discurso estabelecido.
O farisaísmo, com seu culto às regras e tradições petrificadas, torna-se símbolo de uma religião fossilizada, onde o sábado, dado para o homem, é usado contra o próprio homem. Em Jesus, a profecia reencontra sua liberdade originária — não a liberdade de fazer o que se quer, mas aquela liberdade interior, incondicionada, que reconhece no outro a presença de Deus. Quando ele cura no sábado, toca os intocáveis, fala com samaritanos, acolhe pecadores e mulheres, ele não apenas quebra normas: ele as transcende, revelando que o sagrado não se fecha no templo, mas irrompe na rua, na mesa, no gesto de compaixão.
Essa atitude desestabilizadora o coloca em rota de colisão com os sistemas religiosos cristalizados. E não é por acaso que, ao longo dos séculos, aqueles que se disseram seus seguidores muitas vezes reproduziram, sob novos nomes, os mesmos mecanismos que o conduziram à cruz: legalismo, exclusão, violência em nome do sagrado. A história da cristandade é, em grande parte, a história da constante tentativa de domesticar o escândalo do Evangelho.
Por isso, o discurso cristão exige uma reafirmação cotidiana — não como repetição de dogmas, mas como vivência prática da graça, da justiça e da verdade. O cristianismo, quando fiel ao Cristo, não se fixa em dogmas estéreis, mas se realiza na práxis ética: no cuidado com o outro, no amor ao inimigo, na recusa da lógica sacrificial que precisa de bodes expiatórios.
Jesus universaliza a fé de Abraão ao deslocá-la do tribalismo religioso para a ética da alteridade. Em seu ensinamento, antecipa-se, de modo profético, a gramática dos direitos humanos: a dignidade incondicional de cada pessoa, a centralidade do pobre, a sacralidade da vida. A fé já não é definida por ritos ou linhagem, mas pela capacidade de ver Deus no outro e responder com amor.
Se Sócrates foi o pai da filosofia ocidental por ter colocado em questão o saber estabelecido, Jesus é seu irmão espiritual ao ter levado esse questionamento ao domínio do sagrado. Ambos morrem como mártires da verdade. Ambos nos legam, mais do que doutrinas, o chamado permanente à autenticidade do espírito diante de estruturas que tendem sempre à idolatria.



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