A crise dos cachorros e a necessidade de se fazer política - Blog A CRÍTICA

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quinta-feira, 15 de maio de 2025

A crise dos cachorros e a necessidade de se fazer política



Há dias, nesta provinciana e ardente Caicó — onde o sol parece ensaiar para o inferno e os fatos políticos se passam como cenas de um circo mal armado — deu-se um episódio digno das melhores comédias romanas. O alcaide local, homem mais afeito aos palcos do que aos papéis oficiais, em momento de rara franqueza ou descuido (o que em política dá no mesmo), recomendou aos munícipes que não alimentassem os cães vadios que circulam pelas ruas.


Era uma entrevista amistosa, daquelas feitas entre risos e microfones camaradas. Mas, como se sabe, até a mais domesticada das entrevistas pode morder. E mordeu. O povo, que nem sempre se comove com a miséria humana, estremeceu ante a desfaçatez do discurso. Não se fale aqui de crianças nas calçadas ou velhos sem pensão — o escândalo era canino.


Logo as redes — essa nova ágora onde todos opinam e ninguém se escuta — se incendiaram. Houve críticas, protestos e até manifestação de rua, o que, em terras onde o calor costuma ser desculpa para a apatia, é quase revolução. No mesmo dia, a augusta prefeitura, que atende pelo nome de uma produtora de eventos — talvez por achar mais sonoro — anunciou um projeto de castração para conter a natalidade dos quadrúpedes. Providência tardia, mas não inútil: ao menos revelou que o poder público ainda sabe que existe o verbo "agir".


Mas permitam-me uma digressão: imaginai, caro leitor, se o mesmo zelo com os cães se aplicasse à coisa pública. Se o povo, em vez de vender o voto por um favor miúdo, tomasse gosto pela política como quem toma gosto por um cão de rua: acolhendo, cuidando, cobrando. Se fundássemos associações, não para as festas, mas para as ideias. Se a política deixasse de ser temporada de caça — aos cargos, aos contratos, aos conchavos — e se fizesse exercício da razão, da justiça e do bem comum.


Talvez um dia cheguemos a isso. Por enquanto, contentemo-nos com a castração dos cães. Castrar ideias ruins, infelizmente, exige bisturi mais fino.

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