Não alimente os cães - Blog A CRÍTICA

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terça-feira, 6 de maio de 2025

Não alimente os cães



O prefeito de Caicó recomendou, com todas as letras e nenhuma hesitação: "Não alimente os cães". A frase, à primeira vista, parece um aviso banal, desses que se lê em cercas de sítio. Mas, dita pela autoridade máxima do município, adquire o peso de uma filosofia de governo.


Não alimente os cães — porque, segundo a lógica da administração, se o cão come hoje, amanhã voltará. E se volta, late. E se late, incomoda. Melhor, então, deixá-lo à própria sorte, até que o sol do Seridó e a poeira da indiferença o façam desaparecer.


Mas há algo mais profundo nesse mandamento. No fundo, trata-se de uma metáfora involuntária — e perigosa — sobre como certos gestores encaram os problemas sociais: não os enfrentam, não os tratam, não os acolhem. Ignoram. Secam a fonte da carência e esperam que o problema morra de sede.


O cão, aqui, é o símbolo do que incomoda: o lixo acumulado, a seca esquecida, o agricultor abandonado, o bairro sem água, a rua sem sombra. Tudo o que não cabe nos palcos iluminados por shows e promessas. Afinal, enfrentar problemas reais exige algo mais do que festas e pirotecnia — exige capacidade administrativa, planejamento e, sobretudo, coragem moral.


Dizer “não alimente os cães” é mais fácil do que dizer “vamos construir uma política pública de proteção animal”. Assim como distribuir panfletos é mais fácil do que distribuir água, ou inaugurar praças de cimento é mais simples do que garantir merenda nas escolas.


Mas o povo, coitado, segue muitas vezes alimentando o que não devia: alimenta a demagogia com aplausos, a vaidade com curtidas, e a incompetência com votos. Alimenta-se, também, da ilusão — aquela que vem embalada em discursos bonitos, jingles pegajosos e promessas recicladas.


No fim, talvez o prefeito tenha razão. Não alimente os cães. Mas amplie o conselho:


Não alimente os demagogos. Não alimente os que fogem da realidade. Não alimente os que fabricam eventos em vez de enfrentar as urgências de um povo sedento.


Porque, diferente dos cães, que apenas buscam afeto e um pedaço de pão, esses sim voltam a cada quatro anos — famintos de poder — e sempre encontram quem os alimente.


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