![]() |
| Foto: Wesley Duarte/Prefeitura de Mossoró |
No último sábado, durante o evento Pingo da Mei Dia, em Mossoró (RN), um episódio gravíssimo — porém não surpreendente — lançou luz sobre a fragilidade da nossa democracia, o uso indevido da máquina pública e o abuso das festas populares como palanque disfarçado. O cantor Xand Avião, contratado por expressivos R$ 700 mil com verba pública, protagonizou uma cena de campanha aberta ao declarar: “Quem quer Allyson para governador grita eeeeeu! Por mim ele era presidente logo!”.
A declaração, feita diante de um público estimado em 244 mil pessoas, em plena execução de um contrato público, não é apenas um desvio ético. É uma violação clara da legislação eleitoral, um atentado ao princípio constitucional da impessoalidade e uma utilização escancarada da cultura como instrumento de manipulação política. Trata-se, na essência, de um showmício proibido — travestido de entretenimento.
Crime eleitoral à luz da Lei das Eleições
O artigo 36 da Lei nº 9.504/1997 estabelece que a propaganda eleitoral só pode ser realizada a partir de 16 de agosto do ano da eleição. Antes disso, qualquer ato que configure pedido explícito de voto, ou que tenha finalidade eleitoral, pode ser considerado propaganda antecipada e resultar em multa, além de outras sanções à candidatura beneficiada. No caso de Xand Avião, não há como alegar neutralidade ou espontaneidade: a frase é clara, dirigida a um público em massa, em um evento pago com recursos públicos e com evidente conotação eleitoral.
Mais ainda: o próprio Tribunal Superior Eleitoral já firmou jurisprudência consolidada sobre a vedação aos chamados showmícios, prática proibida justamente por distorcer o equilíbrio do processo eleitoral e utilizar o prestígio artístico para influenciar politicamente o eleitorado. Quando o artista é pago com recursos públicos e se transforma em cabo eleitoral de luxo, o Estado deixa de servir à coletividade para servir a um projeto pessoal de poder.
Violação ao princípio da impessoalidade
O episódio também fere o princípio da impessoalidade previsto no artigo 37 da Constituição Federal. Esse princípio exige que a Administração Pública atue com neutralidade, sem promoção pessoal de agentes políticos. Quando um prefeito contrata um artista que, no palco, agradece o cachê promovendo sua candidatura futura, estamos diante de uma confusão inadmissível entre o público e o privado.
Mais grave ainda é o fato de que o cantor Xand Avião não atua sozinho. Ele é empresário de diversos outros artistas que também compõem o line-up do Mossoró Cidade Junina. No total, R$ 3,5 milhões em contratos públicos orbitam em torno de seu nome. É evidente que não estamos diante de um ato isolado, mas de uma operação cuidadosamente estruturada para criar uma narrativa de prestígio e liderança regional em torno do nome de Allyson Bezerra.
Soft power e manipulação simbólica
O conceito de soft power, cunhado por Joseph Nye, diz respeito à capacidade de um agente político exercer influência não pela força, mas pela cultura, pelo carisma, pelo entretenimento e pela construção simbólica de legitimidade. No contexto de Mossoró, o prefeito faz uso explícito desse tipo de poder simbólico: convoca multidões em festas públicas, financia artistas com alto apelo popular e transforma eventos culturais em vitrines de autoengrandecimento.
Essa estratégia é, em essência, autoritária. Ela desloca o debate político dos espaços institucionais — como os parlamentos, os meios de comunicação e os fóruns acadêmicos — para a arena do espetáculo, onde a crítica é abafada pelo som dos paredões e pela euforia das massas. É a política feita com microfone na mão e dinheiro público no bolso.
A responsabilidade dos órgãos de controle
Diante da gravidade do fato, cabe agora ao Ministério Público Eleitoral, ao Tribunal Regional Eleitoral do RN e aos órgãos de controle investigarem as possíveis ilegalidades. O que se viu não foi apenas um abuso do erário, mas um atentado ao regime democrático, que exige lisura, igualdade de condições e distinção clara entre o que é Estado e o que é campanha.
A política que se faz com dinheiro público e manipulação simbólica precisa ser desmascarada. O que está em jogo não é apenas a lisura de um processo eleitoral, mas a própria dignidade do serviço público e o respeito à inteligência do povo potiguar.



Nenhum comentário:
Postar um comentário