O Cimento e a Santa - Blog A CRÍTICA

"Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados." (Millôr Fernandes)

Últimas

Post Top Ad

quarta-feira, 16 de julho de 2025

O Cimento e a Santa



Na cidadezinha de Cacaracá — que, por modéstia ou fingimento, se diz simples, mas ostenta uma vaidade de capital imperial em ruínas — a vida gira como um pião bêbado entre Deus, o diabo e o cimento. Não se trata de exagero retórico, mas de exatidão estatística. Se ali se mede a fé pelo número de estátuas, e a danação pela ausência de sombra, é porque o cimento virou sacramento.


Os chefes políticos dessa excelentíssima vila de ambições medíocres, todos formados com louvor na vetusta Faculdade de Demagogia do Seridó, seguem com esmero seus protocolos: inauguram pracinha, batem palmas para si mesmos, sorriem em fotografias de baixa resolução e depois desaparecem entre uma missa e um contrato. Uns se disfarçam de médicos, outros de engenheiros do apocalipse urbano, mas todos possuem em comum a habilidade de pronunciar palavras como "progresso" e "urbanização" com os olhos marejados — não de emoção, mas de poeira.


Agora mesmo, por inspiração ou castigo, resolveram que as árvores — essas indecentes criaturas que ousam dar sombra e frescor — estavam em excesso. Trataram, pois, de erradicá-las com zelo burocrático e fúria hidráulica, substituindo galhos por bancos de concreto e raízes por bloquetes. Uma beleza! Dizem que é para “revitalizar o centro histórico”, ainda que nada tenha sobrevivido além do calor.


A praça central, antes um modesto oásis de velhinhos e estudantes entediados, converteu-se em deserto retangular, com bancos que assam nádegas e postes que não iluminam consciências. E tudo isso sob o olhar resignado da padroeira da cidade, uma santa esculpida em gesso e exausta de tanto louvor duvidoso. A pobre imagem, fixada entre altifalantes e barracas de churrasquinho, já não sabe se reza ou se desmaia.


Aliás, em Cacaracá, os anos não se contam pelo calendário gregoriano, nem por qualquer tabela republicana. O tempo se mede pelo ciclo da festa da santa: antes da festa, durante a festa, depois da ressaca da festa. É um ano litúrgico onde a espiritualidade se confunde com o forró eletrônico, e a fé se embriaga de emendas parlamentares. A santa, coitada, mal tem tempo de repousar sua auréola entre um show de Wesley Safadão e uma procissão patrocinada por verba desviada.


Mas não sejamos injustos. Há avanços. A cada mandato, uma nova rotatória é erguida, uma nova calçada é cimentada, e uma nova promessa é lançada ao vento — que, aliás, já não sopra, tolhido pela onda de calor provocada por tanto cimento e pouca vergonha.


Cacaracá é, portanto, um prodígio tropical: uma cidade onde o cimento é ideologia, a demagogia é ciência e a árvore é heresia. Um lugar onde o futuro já chegou — e está todo encoberto de pó.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Post Bottom Ad

Pages