Caravaggio, Os músicos , 1597.
O canto é uma das mais antigas manifestações da alma humana. Desde os primórdios, ele não se limita a ser mera emissão sonora, mas ato ritual, ponte entre a palavra e o sagrado. Por que os homens cantam? Na Grécia arcaica, o aedo narrava epopeias ao som da lira, e sua voz era veículo de memória coletiva. No canto, a história ganhava corpo e emoção. Na Odisseia , Ulisses chora ao ouvir o relato de suas próprias fachadas — prova de que a música, mais que descreve, reabre feridas e despertares profundos.
Não se canta como se fala. O canto exige um trato especial com a voz, um domínio técnico que, segundo a tradição ocidental, é inseparável do espírito. Santo Agostinho, em suas Confissões , dizia: "Quem canta reza duas vezes" . A frase não é mero elogio à música litúrgica, mas afirmação de que a melodia amplifica a palavra, elevando-a a outra dimensão da experiência humana.
No Brasil, o canto também foi instrumento de denúncia e resistência. No Nordeste, Luiz Gonzaga estende a voz e a sanfona para contar ao país sobre a seca, a fome e o êxodo. Depois vieram Fagner, Belchior e Zé Ramalho — três menestréis que, cada um a seu modo, traduziram a condição humana em versos de delírio, ternura e crítica social. Eram poetas que compreendiam o timbre como parte da mensagem, o arranjo como respiração da narrativa. E então, veio o silêncio — não da ausência de música, mas do esvaziamento do sentido.
O que hoje chamamos de forró eletrônico é, na verdade, uma mutação estética: a incorporação da lógica da lambada e do axé ao baião e ao xote, mas sem o refinamento rítmico ou a poesia que sustentava o gênero. A voz é tratada como efeito eficaz, processada até perder humanidade. Ouvir um disco inteiro de certos ícones contemporâneos — avançados, um Xand Avião — pode equivaler a um submenu do cérebro a uma marreta rítmica incessante. Não há variação de dinâmica, não há timbre que respire; a harmonia se reduz a poucos acordes circulares, repetidos até a exaustão.
A música popular, quando diminuída a este padrão industrial, deixa de ser canto e passa a ser ruído coreografado. Na teoria musical, pensamos dizer que a supressão da tensão e resolução — aquela oscilação que dá vida à melodia — mata o prazer auditivo. É como se um escultor decidisse polir uma estátua até apagar-lhe todos os contornos. O que sobra é liso, brilhante… e sem alma.
O perigo não é apenas no mau gosto, mas no esquecimento do que o canto pode ser. Se a música nasceu para exaltar, narrar e curar, transformará-la em agressão sonora é, de certo modo, profanar um dos mais antigos patrimônios da humanidade: a voz que, desde as epopeias gregas até os cantadores do sertão, serviu para unir, emocionar e dar sentido à experiência


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