O modus operandi da corrosão democrática: entre a negação dos ritos e o culto à insegurança - Blog A CRÍTICA

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quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O modus operandi da corrosão democrática: entre a negação dos ritos e o culto à insegurança



Vivemos tempos de dissolução. A autoridade que outrora emanava da solenidade das instituições e da previsibilidade dos ritos foi desidratada, liquefeita, convertida em espetáculo. Substituímos o pacto pelo palanque, a Constituição pela corrente de WhatsApp, e os representantes pelo influencer.


O que chamamos de modus operandi da política contemporânea não é mais o exercício paciente do diálogo institucional, mas uma sucessão de choques calculados. A política, como se dissesse Guy Debord, foi totalmente espetacularizada. A lógica do espetáculo, no entanto, não se contenta com o dissenso: ela requer o inimigo.


No Brasil, o advento do bolsonarismo instituiu uma forma de fazer política baseada na desconfiança ativa das instituições e na negação de seus ritos. É um projeto que transforma o crime em estratégia e a punição em marketing. O próprio Jair Bolsonaro, ao ser processado por tentativa de golpe de Estado e, em seguida acautelado em prisão domiciliar por tumultuar o andamento processual, usa a sanção como prova de perseguição, ao passo que mobilizava seus seguidores com o grito de guerra: “Querem calar a minha voz!”.


Nos Estados Unidos, esse mesmo modelo encontrou eco na figura de Donald Trump. A invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, não foi um ataque espontâneo – foi o desfecho lógico de uma narrativa construída com esmero: o sistema é corrupto, a imprensa é mentirosa, a eleição foi fraudada. Se as regras não servem ao líder, são elas que devem ser anuladas. Essa é a nova liturgia dos populismos autoritários.


Ambos, Trump e Bolsonaro, compartilham mais que afinidade ideológica – compartilham um método. Um modus operandi que consiste em:


  1. Produzir um inimigo permanente: seja o “sistema”, o STF, os “globalistas” ou os “comunistas infiltrados nas universidades”.

  2. Negar os fatos em nome da fé: a verdade é menos importante que a convicção. O culto à pós-verdade não é ignorância, é escolha.

  3. Vitimizar-se diante da punição: qualquer responsabilização judicial é reinterpretada como perseguição política.

  4. Colonizar o simbólico religioso: no Brasil, a fé evangélica foi instrumentalizada para criar uma militância que se vê como “escolhida” para uma cruzada moral. Não se trata mais de cristãos no espaço público, mas de “guerreiros de Deus” contra o sistema do Anticristo.


Essa forma de agir rompe o contrato tácito que sustenta as democracias modernas. O pacto de 1988, no Brasil, era uma tentativa de refundar o laço social em bases republicanas. Havia políticos desonestos, sim, mas havia também o respeito aos ritos: o Congresso funcionava, as leis eram negociadas, a retórica se media por compromissos.


Hoje, temos uma nova geração de parlamentares e militantes que transformam a agressão em virtude e a desinformação em método. Nas redes sociais, a deputada Carla Zambelli aparece armada, correndo pelas ruas, como se a barbárie fosse expressão de coragem. O deputado Nikolas Ferreira, em tribuna, zomba de pessoas trans, num circo de deboches que substitui qualquer noção de civilidade.


Vivemos sob o império da insegurança cultivada. Os líderes populistas não prometem soluções, mas indicam culpados. E quanto maior a crise – econômica, sanitária, moral – mais fértil o terreno para discursos fáceis e salvadores improváveis. A insegurança, hoje, não é um problema a ser resolvido, mas um ativo político a ser explorado.


A grande ironia da modernidade líquida é esta: ao dissolvermos os vínculos estáveis, ficamos à mercê dos vendedores de certezas. E as certezas oferecidas são sempre binárias: bem contra mal, povo contra elite, Deus contra demônios.


A democracia, no entanto, não se sustenta nesse tipo de dualismo místico. Ela exige ambiguidade, escuta, negociação – tudo aquilo que foi sistematicamente substituído pela gritaria das redes e pela histeria performática dos palanques.


A pergunta que se impõe é: como reconstruir vínculos sólidos num mundo que premia a volatilidade? Como restaurar a política enquanto espaço de mediação, e não de exibição?


Talvez a resposta esteja, como sempre, em resistir à tentação do atalho. Em reaprender o valor do rito, do compromisso, da responsabilidade. Em lembrar que o caminho mais difícil, embora menos atraente, é o único que não nos conduz ao abismo.

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