Por Ergon Cugler, pesquisador do Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovações na Gestão Pública da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP
No começo, a promessa parecia um milagre. As contas diminuíram, os postes ficaram mais brilhantes e até os comércios prosperaram. Mas, com o passar dos anos, algo mudou.
O preço começou a subir. Um reajuste aqui, outro ali, até que a cidade percebeu que estava pagando caro por uma energia que já não controlava. Quando os moradores tentaram mudar para uma fonte de energia própria, com painéis solares instalados no telhado, o empresário reagiu: ameaçou cortar o fornecimento e aplicar uma multa incalculável por “quebra de contrato”.
O tempo passou, e o vendedor ficou mais poderoso. Ele passou a influenciar as decisões da prefeitura, exigindo benefícios fiscais e prioridade nos investimentos públicos. Quando a cidade cogitou revisar o acordo, ele respondeu com ameaça: bastava apertar um botão para que tudo ficasse às escuras e nem o único hospital da cidade poderia funcionar. E foi assim que aquele povo, que antes tinha autonomia e energia própria, se viu refém de uma dependência silenciosa. Trocou a soberania por conveniência. Assinou, sem perceber, uma sentença eterna de servidão.
Parece ficção, mas é o retrato do Brasil. Só mudam os cabos: em vez de fios elétricos, cabos de fibra óptica; em vez de um comerciante local, conglomerados que controlam dados e algoritmos.
O fio invisível da dependência
Na mesma realidade, em 2021, o Governo Federal decidiu migrar massivamente os dados do Ministério da Saúde para servidores da Amazon Web Services (AWS), que ficam nos Estados Unidos. Isso significa que informações sensíveis do Sistema Único de Saúde (SUS), que deveriam estar apenas sob governança pública brasileira, foram parar em galpões no subsolo do Vale do Silício, submetidos à jurisdição e fiscalização dos órgãos oficiais dos Estados Unidos.
Ocorre que quando um país entrega seus sistemas críticos a empresas estrangeiras, abdica de parte relevante da sua autonomia política e econômica. O risco não é teórico.
Quando Donald Trump ameaçou o Brasil com tarifas e insinuou restringir o acesso ao GPS, mostrou o quanto a dependência digital e tecnológica pode ser usada como instrumento de coerção. Se a infraestrutura tecnológica nacional depende de corporações sediadas em outro país, basta uma decisão em Washington para comprometer políticas públicas inteiras no Brasil inteiro.
Atualmente, o Ministério da Saúde tenta reduzir essa dependência e retomar o controle sobre parte de sua infraestrutura digital. Mas enquanto a submissão tecnológica for tratada como normalidade, continuaremos aceitando que nossa saúde, nossas políticas públicas e até nossa democracia fiquem armazenadas em servidores que respondem a outros interesses.
Esse cenário se agrava quando vamos aos dados do estudo, que pude coordenar em uma parceria entre grupos de pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade de Brasília (UnB). Ao mapearmos dezenas de milhares de contratos e milhões de unidades contratadas por prefeituras, estados e União ao longo dos últimos anos, descobrimos que o Brasil já desembolsou, pelo menos, R$ 23 bilhões a fornecedores de tecnologias de empresas como Microsoft, Oracle e Google, por licenças de software, nuvem e aplicações de segurança, sendo R$ 10,35 bilhões apenas entre junho de 2024 e junho de 2025. Esse valor é a ponta do iceberg, pois muitos contratos são mascarados. Mais do que isso, trata-se de um valor nominal, sem considerar a inflação dos últimos anos. Então a conta é muito maior. Mas o que são R$ 23 bilhões para um país com teto de despesas de R$ 2,2 trilhões apenas para 2025?
Para se ter uma ideia da dimensão, os R$ 23 bilhões gastos pelo poder público brasileiro com tecnologias de empresas estrangeiras nos últimos anos seriam suficientes para erguer cerca de 80 data centers de alto desempenho no País, o que praticamente dobraria a atual capacidade instalada, hoje quase toda privada. Apenas os R$ 10 bilhões desembolsados entre 2024 e 2025 já poderiam custear, por um ano inteiro, bolsas Capes/CNPq para todos os 350 mil mestrandos e doutorandos do Brasil, não apenas os que recebem apoio atualmente.
Políticas públicas inteiras dependem da boa vontade de plataformas privadas que sequer estão em território nacional. Universidades públicas armazenam o conhecimento inclusive de segredo industrial em nuvens estrangeiras. Prefeituras contratam softwares que não podem auditar nem adaptar às suas realidades locais. Até mesmo reuniões de Estado ocorrem em aplicativos sujeitos a leis de outros países. Nesse cenário, se um contrato é rompido, um servidor é suspenso ou uma sanção é imposta, o País inteiro sente o impacto.
O Brasil ainda pode escolher
Não se trata de adotar um isolacionismo digital, nem de cair em qualquer forma de tecnofobia. Toda democracia contemporânea precisa interagir com as inovações e infraestruturas das nações vizinhas. O ponto central não é o uso ou não uso de ferramentas estrangeiras, mas a dependência exclusiva delas, operar sem plano B, sem soberania digital e tecnológica, sem transferência de tecnologia por parte dessas companhias para universidades brasileiras, sem backup em território nacional e sem alternativas locais minimamente viáveis para momentos de crise.
Outras regiões do mundo decidiram reagir. A União Europeia criou o sistema Galileo para não depender do GPS estadunidense e investiu em uma nuvem pública e em software livre para garantir autonomia e transparência. A Índia, a China, o Japão, a Rússia e até a Coreia do Sul desenvolvem seus próprios ecossistemas tecnológicos. Não se trata de isolamento, mas de equilíbrio. Nenhum desses países abriu mão de interagir com o mundo. Apenas decidiram que não seriam integralmente reféns de decisões privadas de seus vizinhos.
O Brasil tem universidades de excelência, cientistas premiados e capacidade técnica reconhecida. O que falta não é talento, é decisão. Temos infraestrutura de pesquisa, experiência acumulada em governo digital, políticas de dados abertos e especialistas que podem construir alternativas viáveis. Mas é preciso reconhecer que soberania digital não nasce de improviso. Ela depende de política de Estado, orçamento contínuo e vontade política de romper com o ciclo da dependência.
É nesse sentido que um Plano Nacional de Soberania Digital ou uma Estratégia Nacional de Soberania Digital deveriam estar no mesmo patamar de um plano decenal de educação ou de infraestrutura. Deveria incluir metas para criação de data centers públicos e soberanos, estímulos à produção de software livre, exigência de transferência de tecnologia e proteção de dados sob jurisdição brasileira. Até porque, cada real investido em autonomia tecnológica resulta em investimentos na democracia, na segurança nacional e em nosso desenvolvimento enquanto nação.
Por fim, se soberania é a capacidade de decidir o próprio destino, depender da tecnologia alheia é como assinar, de olhos fechados, uma procuração de poder. Hoje, não há soberania nacional sem soberania digital. E a pergunta que fica é: quantas vezes ainda aceitaremos pagar a conta da energia dos outros antes de acender a nossa própria luz?



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