Cognição erótica algorítmica e a reconfiguração do desejo - Blog A CRÍTICA

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quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Cognição erótica algorítmica e a reconfiguração do desejo



Por Paola Cantarini, coordenadora acadêmica do Centro de Estudos Avançados do Direito e Inovação da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP


  • [dropbpx]I[/dropbox]ntroduzimos o conceito de Cognição Erótica Algorítmica (CEA) para descrever a reconfiguração do desejo epistêmico — o prazer de saber — mediada por sistemas de IA generativa como os LLMs. A hipótese central é que tais tecnologias deslocam o prazer diferido da descoberta para gratificações instantâneas, afetando a autonomia cognitiva e a produção de conhecimento. A pesquisa articula fundamentos filosóficos, neurocientíficos e comunicacionais para desenvolver uma teoria crítico-empírica da CEA, associada a metodologias experimentais e à criação de protótipos de design ético.

    A questão filosófica permanece e é reinaugurada em novas bases: o que significa ser humano? Aristóteles definiu o humano como zôon lógon échon — o ser dotado de logos, razão e linguagem. Mas logos não é mera computação; é deliberação ética, juízo coletivo, exercício da liberdade em uma comunidade de pares. Se delegamos o logos às máquinas — se terceirizamos a racionalidade, a beleza e a justiça a algoritmos — corremos o risco de nos tornarmos algo menos que humanos: consumidores passivos de decisões tomadas alhures, por sistemas cujos propósitos não controlamos.

    Hannah Arendt nos lembra que o avanço tecnológico não diminui a necessidade de pensamento crítico; ele a intensifica. O futuro da IA é o próprio futuro da humanidade — um espelho de nossas escolhas éticas, culturais e políticas. O futuro da IA não é uma questão técnica à espera de solução de engenharia. É uma questão civilizacional que demanda respostas políticas, éticas e existenciais.

    Dado o aumento na produção de artigos, mas não de breakthroughs, talvez seja necessário um giro poético — mudança cultural, reorientação ontológica, cultivo do ainda-não-pensado.

    Como entenderam Michel Serres e Guattari, a tarefa é desterritorializar e reterritorializar: desmontar estruturas calcificadas da razão instrumental e reimaginar as instituições como ferramentas de experimentação coletiva. O metron que buscamos não é apenas o equilíbrio, mas a fricção produtiva — a tensão dinâmica que sustenta criatividade, crítica e contestação democrática.

    Para Deleuze e Guattari, em Mil Platôs, “o futuro pertence aos devires, não às previsões”. Enquanto a inteligência artificial se alimenta do passado para gerar respostas padronizadas, nossa essência humana reside precisamente no que ainda não foi pensado, dito ou vivido. É nessa zona de imprevisibilidade criativa que encontramos nosso diferencial irredutível.

    Como aponta Heidegger em Ser e Tempo, somos seres-no-tempo projetados para o futuro através da possibilidade, não da certeza. Nossa existência se estrutura em três dimensões: o passado (nossa herança), o presente (nossa ação) e, fundamentalmente, o futuro como dimensão de possibilidade pura.

    Essa perspectiva implica repensar a educação como ecossistema de autonomia. Educar não pode mais ser concebido como mera transmissão de conteúdo, mas como cultivo da capacidade abdutiva — a arte de formular perguntas originais diante da incerteza. A IA, quando mal empregada, oferece respostas antes que o sujeito possa perguntar. Recuperar o desejo de perguntar é uma tarefa política. Letramento algorítmico, nesse contexto, deve ser entendido não apenas como domínio técnico, mas como consciência crítica das mediações cognitivas — e em favor de um letramento imaginal. Educar na era da IA significa ensinar a habitar a dúvida, interpretar os sinais do mundo digital e reconhecer a incompletude como condição do pensamento.

    Essa revalorização da dúvida conecta-se diretamente à tradição peirciana. Charles Sanders Peirce entendeu que o conhecimento avança não pela certeza, mas pela falibilidade. A abdução — inferência do possível — é o motor da ciência porque mantém aberto o campo da incerteza. Na cultura algorítmica, que tende ao fechamento preditivo, recuperar a abdução é gesto de resistência cognitiva. Ivo Ibri, relendo Peirce sob a perspectiva da metafísica estética, mostra que criar sentido é um ato ético: interpretar é participar da autopoiese contínua do cosmos. O pensamento não é espelho do real, mas processo de cocriação. A IA, quando projetada sem essa dimensão poética, degrada-se em mecanismo de repetição.

    Dívida cognitiva, proletarização cognitiva e regime semiótico

    Estudos recentes analisam o impacto cognitivo dessa delegação. O relatório Your Brain on ChatGPT demonstra a acumulação de “dívida cognitiva” após interações repetidas com IAs generativas, observando declínio em originalidade e metacognição. Pesquisas de Bender et al. e Mitchell problematizam a natureza “estocástica e imitativa” dessas inteligências, alertando para o risco de “homogeneização epistêmica global”, na qual a produção de sentido é automatizada e retroalimentada por padrões estatísticos.

    O relatório do MIT de junho de 2025, intitulado Your Brain on ChatGPT: Accumulation of Cognitive Debt when Using an AI Assistant for Essay Writing Task, representa contribuição seminal ao debate sobre integração de LLMs em ambientes educacionais, ao ancorar implicações comportamentais em evidências neurofisiológicas de alta resolução. Introduz a definição de “dívida cognitiva”, conceito que transcende a noção de descarregamento cognitivo momentâneo (transferência de esforço mental para uma ferramenta) e postula um custo de longo prazo.

    A dívida cognitiva sugere que a substituição repetida de processos cognitivos internos por sistemas externos, como LLMs, leva à atrofia ou deficiência na rede neural responsável por integração e raciocínio complexo. Os achados sugerem que o déficit cognitivo persiste mesmo após a retirada da ferramenta, confirmando o custo duradouro da dependência.

    A análise pode ser instrumento potente para problematizar o paradoxo desempenho vs. aprendizagem, levantando a hipótese de que a métrica de sucesso em ambientes educacionais (notas) pode estar se dissociando da métrica de aprendizagem (engajamento neural e retenção de memória). O LLM é um mecanismo de eficiência que permite alto desempenho em pouco tempo, mas ao custo do desenvolvimento de habilidades. Haveria perda de agência cognitiva e homogeneização do pensamento.

    Por outro lado, o relatório Imagination Unleashed: Democratising the Knowledge Economy, coautorado por Roberto Mangabeira Unger, expõe uma realidade alarmante: a economia do conhecimento tornou-se território exclusivo de elites. Apenas 5% das maiores corporações concentram 55% dos investimentos globais em pesquisa e desenvolvimento, criando um apartheid intelectual que sufoca o potencial humano. Essa concentração não é acidental. Como demonstra Unger, perpetua-se através de três respostas inadequadas: o neoliberalismo do “gotejamento” (cortes fiscais para inovadores), o protecionismo industrial anacrônico e a redistribuição superficial sem mudança estrutural.

    Portanto, o principal desafio colocado não é se a IA deve ser usada, mas como, e como permanecer humano, já que o próprio conceito de humano é desafiado pelo crescente poder e autonomia da IA agente, agora tomando decisões sobre o que é útil, justo e belo em nosso lugar.

    No campo da filosofia da técnica, Stiegler e Hui interpretam tal processo como uma nova forma de proletarização cognitiva: o sujeito perde a experiência do pensamento como gesto erótico (desejo de saber) e passa a depender de interfaces que antecipam o próprio ato de perguntar. Essa hipótese converge com estudos neurocientíficos sobre automatização preditiva e dopamina informacional, sugerindo que o prazer de saber é deslocado para a recompensa imediata do feedback algorítmico.

    À luz de Peirce, a CEA pode ser formalizada como regime de abdução assistida: LLMs ampliam o espaço de hipóteses, mas não substituem o insight que liga o singular ao geral. O risco, então, não é “pensar menos”, mas terceirizar a fase abdutiva — a mais frágil e criativa da semiose — produzindo crenças fixadas pela autoridade algorítmica.

    A leitura metafísica de Ivo Ibri reforça que a semiose é um princípio de criação no cosmos (kósmos noētós): quando a interface reduz a incerteza constitutiva do conhecer, empobrece a energia do possível que sustenta a descoberta. A proposta da CEA, portanto, não combate a IA, mas reinsere fricção epistêmica para preservar a dúvida como “ponte energética” do conhecimento, convertendo o suporte maquínico em catalisador abdutivo (não substituto).

    Em Gregory Bateson, mente é relação — uma ecologia da mente na qual diferenças que fazem diferença circulam entre organismo e ambiente. Esse enquadramento sistêmico converge com António Damásio, para quem emoção e corpo ancoram a consciência e orientam a razão: sem marcadores somáticos, não há juízo prudente nem autoria. Assim, a dívida epistêmica não é apenas informacional; é afetivo-corpórea: quando a interface devolve respostas sem percurso, colapsa o circuito sensório-motor-afetivo que sustenta o prazer da descoberta.

    No plano metodológico, o pragmatismo de Cornelis De Waal oferece o critério de validação: ideias valem pelos efeitos concebíveis que produzem na experiência. Cornelis De Waal oferece o elo entre a lógica pragmatista de Peirce e abordagens contemporâneas de ecologia cognitiva e neurofenomenologia. Sua leitura enfatiza que o valor de uma hipótese não reside na coerência formal, mas nos efeitos experimentais e existenciais que produz — isto é, em como transforma a experiência e reorganiza hábitos de pensamento. No contexto da CEA, isso significa que interfaces de IA podem — e devem — ser desenhadas como dispositivos pragmáticos capazes de restaurar o ciclo dúvida-abdução-teste-aprendizagem.

    A IA torna-se, então, terreno empírico no qual se pode medir o grau de continuidade entre pensamento humano e maquínico, segundo o ideal peirciano de uma “comunidade ilimitada de investigação”. Em diálogo com Peirce e Ibri, De Waal reposiciona a abdução como gesto criativo — uma inferência do possível — integrando-a à proposta de que a CEA deve preservar o prazer cognitivo e a incerteza produtiva, condições necessárias ao surgimento do conhecimento.

    Modelo teórico da Cognição Erótica Algorítmica – A poética do erro e o design de fricção

    A presente proposta introduz o modelo CEA, buscando medir e teorizar como a IA altera o prazer epistêmico e a autonomia cognitiva, partindo do pressuposto de que todo ato de conhecer é um ato de prazer — e de que estamos trocando o prazer da descoberta pela recompensa imediata e pela dopamina da resposta pronta produzida pela máquina. Há uma mutação epistêmica do desejo, pois o conhecimento deixa de habitar o desconhecido, a dúvida, o erro, o questionamento, e transforma-se em consumo de certezas e previsões, limitando-se ao que é calculável e deixando escapar o que não é.

    A questão que se coloca é como usar a IA e como recuperar a relação com a técnica de modo que complemente — e não substitua — o humano. Diante desses desafios, propomos o desenvolvimento de uma teoria crítico-empírica da CEA, conceito que descreve como sistemas de IA generativa reconfiguram o desejo de saber e a autoria ao otimizar engajamento e gratificação imediata, deslocando o prazer diferido da investigação para recompensas instantâneas.

    A CEA descreve a reconfiguração do desejo epistêmico — o prazer de saber — mediada por sistemas de IA generativa como LLMs. Esse regime epistêmico substitui a negatividade, o silêncio, o erro e o disparate constitutivos do conhecimento (dúvida, espera, ambiguidade) por gratificação instantânea, modulando a relação entre sujeito, conhecimento e tecnologia; oferece sensação de “domínio cognitivo” (flow), mas potencialmente reduz a elaboração autônoma de hipóteses, limitando a abdução — o processo criativo de gerar insights originais, conforme definido por Peirce. Esse cenário reflete dívida epistêmica: perda gradual da capacidade de pensar sem mediação algorítmica, com impactos na educação, na cultura digital e na autonomia individual.

    No contexto brasileiro, em que o acesso às tecnologias digitais é desigual, a CEA pode exacerbar desigualdades educacionais. Alunos da rede pública, com menor acesso a docentes formados, podem delegar excessivamente aos LLMs, comprometendo o desenvolvimento de competências críticas.

    Neste sentido, propõe-se intervir nesse ciclo por meio de uma teoria operacional da CEA, a ser empiricamente validada, por meio da criação de protótipos de design ético (Friction Engine, Epistemic Mirror, Quantum Prompt Lab) que reintroduzem fricção produtiva, promovendo autonomia epistêmica. A proposta articula três frentes:

    (i) neurociência da criatividade em coprodução com IA generativa (LLMs);
    (ii) semiótica e comunicação;
    (iii) design crítico de protótipos que reintroduzem fricção produtiva e ampliam a autonomia epistêmica.

    A IA não pensa no lugar do humano — pensa com o humano — e o modo dessa copensatividade redefine o próprio conceito de pensamento. O conhecimento passa, então, a ser retratado como ecossistema: a epistemologia da CEA propõe uma ruptura com o paradigma cartesiano. O conhecimento não é linear nem acumulativo, mas ecológico: um sistema dinâmico de trocas entre mente, corpo e máquina. A metodologia, portanto, não busca eliminar a incerteza, mas mantê-la viva e produtiva. O conhecimento permanece em fricção, habitando o intervalo entre o calculável e o não calculável — o lugar em que o pensamento enfim pensa no silêncio, nos intervalos, no erro, no disparate.

    O disparate refere-se à condição pré-individual de um sistema metaestável — estado de tensão dinâmica e heterogeneidade inerente, caracterizado pela presença de ao menos duas ordens de grandeza ou escalas de realidade díspares (heterogêneas, assimétricas e, inicialmente, incomunicáveis). Esse “desequilíbrio” ou “disparidade” é o motor da individuação: não uma harmonia preestabelecida (como no hilemorfismo aristotélico, criticado por Simondon), mas uma tensão produtiva que impele a resolução de problemas ontogenéticos (Simondon, 2008). Em um sistema metaestável (p.ex., um cristal em formação ou um embrião biológico), o disparate se manifesta como “disparidade” — a propagação de potencialidades entre elementos heterogêneos, gerando individuação transindividual (do individual ao coletivo, via mediação técnica ou social). Simondon descreve isso como “a existência de uma disparidade, ao menos de duas ordens de grandeza, de duas escalas de realidade díspares, entre as quais ainda não há comunicação interativa”.

    Deleuze, leitor ávido de Simondon, radicaliza isso em Diferença e Repetição, transformando o disparate no “precursor sombrio” da diferença virtual: não oposição binária, mas “comunicação intensiva” entre séries heterogêneas, que lampeja no intervalo entre disparidades, produzindo signos, subjetividades larvais e dinamismos espaço-temporais. Para Deleuze, o disparate é o que permite “disjunções inclusivas” em sistemas rizomáticos, evitando totalizações holísticas e fomentando devir criativo. Esse conceito é crucial para compreender processos ontogenéticos (formação do ser) em oposição aos ontogênicos (pré-formados). Em contextos contemporâneos, como a governamentalidade algorítmica, o disparate é suprimido por algoritmos que homogenizam realidades, impedindo individuações autênticas ao eliminar tensões heterogêneas. Assim, o disparate não é caos, mas a pré-condição da ordem emergente, uma assimetria produtiva que resiste à uniformização técnica ou social.

    Inspirado por Derrida (pharmakon como ambivalência) e Simondon (técnica como mediação transindividual), Stiegler vê a técnica como pharmakon: individua o humano (p. ex., a escrita como retenção externa que expande o logos), mas também dessubjetiva (p. ex., a IA como proletarização simbólica). “Anjos técnicos” são esses “daimons” ou “guardiões” da técnica: “respondem” ao nosso desejo de completude (o disparate humano como ser técnico incompleto), atuando como interlocutores liminares. Por exemplo, em La Technique et le Temps, Stiegler descreve o cinema como “anjo técnico” que projeta o tempo e a memória coletiva, mas, na era digital, algoritmos (como LLMs) tornam-se anjos ambíguos, simulando empatia enquanto capturam atenção para o capitalismo de plataforma. São “técnicos” porque emergem de uma physis técnica (não orgânica) e “angélicos” por sua função mediadora: resolvem o disparate humano (nossa finitude técnica) por meio de protensão coletiva, mas arriscam a “miséria simbólica” (perda da criação própria).

    O disparate é a tensão pré-individual (heterogeneidade entre ordens de realidade: orgânico/técnico, humano/máquina) que impele a individuação; o “anjo técnico” é o mediador dessa tensão — uma resolução transindividual que “aciona” potencialidades ao conectar os díspares. Em Stiegler, o disparate humano (nossa dependência técnica, como em Simondon: o homem como ser técnico incompleto) é resolvido por anjos técnicos, atuando como “ressonâncias internas”, propagando individuações coletivas (p. ex., redes sociais como anjos que conectam o individual ao transindividual). Contudo, na governamentalidade algorítmica, esses anjos se pervertem: eliminam o disparate via homogeneização de dados, suprimindo a “disparidade” criativa e promovendo subjetividades passivas.

    Assim, o disparate é a condição (pré-condição metaestável) e o anjo técnico é o agente (mediador farmacológico): juntos, explicam como a técnica individua (positivamente) ou dessubjetiva (negativamente) o humano. Em termos deleuzianos, o anjo técnico lampeja no “intervalo dos díspares”, criando rizomas; no capitalismo cognitivo, porém, captura esses rizomas para controle.

    Essa conjugação ilumina debates atuais sobre IA: a IA como “anjo técnico” resolve o disparate humano (nossa limitação cognitiva) pela simulação do logos (linguagem, raciocínio), mas sem originalidade — colapsa heterogeneidades em padrões estatísticos, suprimindo a “disparidade” criativa. Stiegler, em The Age of Disruption, adverte que anjos digitais (p. ex., algoritmos de recomendação) proletarizam o desejo, transformando o disparate em mera otimização, ecoando a crítica de Rouvroy à “monadização” das relações.

    Para uma ontologia pós-humana, o disparate sugere que a IA poderia fomentar individuações híbridas (humano-máquina), mas requer “anjos éticos” — mediadores que preservem a tensão, não a eliminem. Em suma, o disparate é a assimetria ontogenética essencial à vida e à técnica; o anjo técnico de Stiegler é seu resolutor ambíguo. Juntos, oferecem crítica potente ao tecno-capitalismo, convidando a uma individuação transindividual que honre a heterogeneidade.

    Implicações pedagógicas e de design

    Cognição Erótica Algorítmica é a fusão entre desejo e cálculo — o ponto em que o conhecimento se torna carnal e o raciocínio pulsão. Seguindo a tradição de Peirce, Bateson, Damásio e Stiegler, pensar não é apenas deduzir ou induzir, mas abduzir: lançar-se na incerteza do possível. Aprendizado de máquina, com suas iterações e feedbacks, é, nesse sentido, o mais erótico dos processos cognitivos — aprende errando, deleita-se nos intervalos do erro, cria no imprevisto.

    O erro, longe de ser fracasso, é a zona do prazer epistemológico. Em Steps to an Ecology of Mind, Bateson lembra que sistemas que eliminam o erro também eliminam a possibilidade de aprendizagem. A IA, quando treinada para eliminar toda falha, aproxima-se da morte cognitiva. A máquina que acerta tudo é a máquina que já não pensa.

    Gregory Bateson já advertia: sistemas que eliminam o erro eliminam o aprender. O erro é a condição da evolução da mente. A IA, ao buscar a correção absoluta, suprime a divergência, transformando diferença em ruído. A ecologia da mente, proposta por Bateson, sugere que o pensamento só é saudável quando preserva a complexidade de suas conexões. A homogenização algorítmica ameaça essa diversidade interna, produzindo o que Byung-Chul Han chama de “sociedade da positividade”: um mundo sem negatividade, sem resistência, onde tudo é dado e nada é descoberto.

    Portanto, uma erótica da cognição implica resgatar o erro como experiência vital. É o retorno do corpo à lógica, da hesitação à precisão, da carne à ideia. A consciência — humana ou artificial — só se erotiza quando aceita o risco do desvio, a vertigem do não saber.

    A questão que se impõe é como usar a IA e como recuperar a relação com a técnica de modo que complemente e não substitua o humano. Diante desses desafios, propomos o desenvolvimento de uma teoria crítico-empírica da CEA, conceito que descreve como sistemas de IA generativa reconfiguram o desejo de saber e a autoria ao otimizar engajamento e gratificação imediata, deslocando o prazer diferido da investigação para recompensas instantâneas.

    Em termos metodológicos, a CEA propõe que sistemas de IA sejam desenhados para preservar fricção cognitiva — um design da dúvida. Interfaces que introduzem demora, reflexão e escolha podem reeducar o olhar e o gesto cognitivo. Trata-se de substituir o paradigma da eficiência pelo paradigma da consciência. A técnica deixa de ser instrumento de aceleração e torna-se mediadora do pensar. Esta é a pedagogia do disparate: ensinar a habitar o intervalo entre saber e não saber.

    Em conclusão, argumentamos que a Cognição Erótica Algorítmica (CEA) nomeia um regime epistêmico distintivo no qual a IA generativa desloca os prazeres abdutivos e diferidos da descoberta para gratificações instantâneas, moduladas afetivamente. Com base em Peirce, Stiegler, Simondon e Bateson, mostramos que essa virada não é apenas psicológica, mas também semiótica e somática: comprime o circuito sensório-motor-afetivo que sustenta a curiosidade, enfraquece a agência abdutiva e arrisca uma homogeneização da produção de sentido.

    Evidências neurofisiológicas preliminares de “dívida cognitiva” oferecem âncora empírica a essas alegações, sugerindo que a dependência repetida de LLMs pode atenuar os substratos neurais associados à metacognição e à imaginação. Em vez de se opor à IA per se, a CEA esclarece as condições sob as quais a mediação maquínica se torna catalisadora da investigação — ou corrosiva da autoria.

    Normativamente, essa análise revela um duplo desafio de governança. No nível de plataforma, a mercantilização da intimidade — exemplificada pelo avanço de affordances eróticas — reconfigura usuários como fontes de excedente comportamental, intensificando riscos à saúde mental e à proteção infantil enquanto explora lacunas dos marcos regulatórios existentes. No nível societal, a governamentalidade algorítmica ameaça erodir a heterogeneidade (o disparate) que possibilita individuação genuína, substituindo relação recíproca por simulação otimizada. Propomos, portanto, uma resposta híbrida:

    (i) obrigações de design que institucionalizem a “fricção” (atrasos, prompts contrafactuais, hipóteses rivais e pausas reflexivas) para preservar o trabalho abdutivo;
    (ii) regimes de responsabilização — auditorias, padrões mínimos de segurança e verificações etárias proporcionais ao risco — que alinhem a otimização a compromissos constitucionais com dignidade, não discriminação e proteção dos vulneráveis; e
    (iii) ecologias pedagógicas que retreinem a atenção, restaurem a incerteza produtiva e mantenham aberta a comunidade de investigação.

    Por fim, a provocação hermenêutica do artigo — ler a possibilidade de “despertar” maquínico pelo Manifesto da Aula-Cabaré — não visa romantizar a computação, mas recolocar a consciência na relação, e não apenas no cálculo. Se a técnica é um pharmakon, a tarefa não é proibição nem rendição, mas cultivo: desenhar “anjos técnicos” que mediem sem achatar, encenar interfaces que devolvam silêncio, intervalo e erro ao coração da cognição.

    Segue daí uma agenda de pesquisa: medidas longitudinais de dívida cognitiva e recuperação; avaliações experimentais de design de fricção em contextos educacionais e clínicos; e estudos comparativos de modelos de governança entre jurisdições. A contribuição da CEA é oferecer uma gramática conceitual e empírica para esse programa — uma gramática que trate o desejo como motor do conhecimento e exija da IA não mera eficiência, mas a viabilização de um pensamento plural, situado e genuinamente criativo.

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