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quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Chomsky: Primavera Árabe: Em fase de desconstrução?

A Primavera Árabe foi um processo de importância histórica, que ameaçou muitos interesses poderosos. O poder não diz “agradecemos por nos desmantelar” e desaparece calado. Não é um momento brilhante, mas as fagulhas acesas pela Primavera Árabe provavelmente explodirão em chamas novamente. Entrevista a Noam Chomsky conduzida por Michael Bröning/IPG Journal.
Três anos após o início das revoluções árabes, o Oriente Médio testemunhou um caleidoscópio de desdobramentos, que vão de eleições livres à repressão violenta de mudanças. Como descreveria, hoje, a Primavera Árabe?
No passado eu descrevi-a como uma “obra em progresso”. Lamentavelmente, agora a expressão “obra em retrocesso” seria mais apropriada. As ditaduras do petróleo foram capazes de reprimir a maioria das tentativas de fazer até mesmo reformas moderadas. A Síria foi empurrada violentamente para o suicídio e provavelmente a divisão. O Iémen está submetido à campanha terrorista global dos drones. A Tunísia encontra-se numa espécie de limbo. A Líbia carece de um governo capaz de controlar as milícias. No Egito, o maior país do mundo árabe, os militares agiram com extrema brutalidade – com um apoio popular que não deveriam receber, a meu ver – no que parece ser um esforço para restaurar o seu rígido controlo político e manter o seu império económico, ao reverter algumas das conquistas mais significativas do período anterior, tais como a liberdade de imprensa e a independência. Os sinais não parecem bons.
Além disso, o conflito sunita-xiita instigado pela agressão dos Estados Unidos e Reino Unido ao Iraque está a despedaçar o país e a espalhar-se ameaçadoramente por toda a região. Há duas partes do mundo árabe que continuam a ser efetivamente colónias: o Sahara Ocidental, onde as manifestações por democracia no final de 2010 foram duramente reprimidas e a luta da sua população por liberdade foi quase esquecida; e, claro, a Palestina. Lá, as negociações estão em andamento conforme as duas precondições essenciais impostas pelos EUA e Israel: que não haja barreiras à expansão dos assentamentos israelitas ilegais e que as negociações sejam encaminhadas pelos EUA. Ocorre que Washington é parte no conflito (ao lado de Israel) e tem vindo a bloquear um consenso internacional indiscutível sobre um acordo diplomático desde 1976, com raras e temporárias exceções.
Sob tais precondições, as negociações tendem a ser pouco mais do que um disfarce para Israel levar adiante os seus programas de integrar o que considera aproveitável, na Cisjordânia (inclusive alguns poucos árabes, para evitar o “problema demográfico”), e de separar a Cisjordânia de Gaza – o que viola os Acordos de Oslo e mantém um cerco brutal. Não é um momento brilhante, mas as fagulhas acesas pela Primavera Árabe provavelmente explodirão em chamas novamente.
As esperanças iniciais de uma trajetória linear em direção ao empoderamento e à democracia há muito desapareceram. A euforia teria sido um engano? Onde e quando as coisas começaram a correr mal?
Nunca deveria ter havido esperança de uma trajetória linear. A Primavera Árabe foi um processo de importância histórica, que ameaçou muitos interesses poderosos. O poder não diz “agradecemos por nos desmantelar” e desaparece calado.
As reações do Ocidente oscilaram desde a intervenção militar até a indiferença, como vimos nos Estados do Golfo. Identifica algum padrão subjacente?
O padrão implícito é familiar: apoio ao ditador favorito durante o maior tempo possível. Se isso se tornar impossível, porque os militares ou a elite económica se voltaram contra ele por alguma razão, então trate de enviá-lo para algum lugar, faça declarações tocantes sobre o seu amor à democracia, e tente restaurar a velha ordem tanto quanto possível. Acontece repetidas vezes. Para mencionar apenas algumas: Somoza, Ferdinando Marcos, Duvalier, Suharto, Mobutu…
É uma política natural para um poder imperial – logo, completamente familiar. Também é natural que isso seja ocultado. A tarefa da comunidade intelectual é apoiar o poder e justificá-lo, não miná-lo – embora alguns quebrem as regras.
Uma das linhas de clivagem regional parece ser o conflito entre forças seculares e religiosas. De que maneira essa dicotomia pode ser tratada construtivamente? Que papel devem desempenhar os governos ocidentais?
Nem a história, nem a lógica, nem a análise política ou qualquer outra fonte que não a propaganda nos dá razões para esperar que os sistemas de poder desempenhem um papel construtivo, a não ser em seu próprio interesse. Isso vale para os sistemas ocidentais, em especial. No Oriente Médio e Norte da África, os maiores poderes – EUA e Grã Bretanha – têm apoiado de modo bastante consistente o Islão radical contra o nacionalismo secular. O favorito tem sido a Arábia Saudita, o estado islâmico de radicalismo mais extremo, e um estado missionário, que espalha as suas doutrinas wahabistas-salafistas por toda a região.
Há estudos académicos excelentes e detalhados sobre a “promoção da democracia” dos EUA pelos seus mais proeminentes defensores, que admitem, com relutância, que o governo apoia a democracia apenas se e quando ela está de acordo com os interesses económicos e estratégicos – como qualquer pessoa racional poderia prever.
Que papel eles deveriam desempenhar? Isso é fácil. Eles deveriam apoiar a liberdade, a justiça, os direitos humanos, a democracia. Podemos dizer o mesmo sobre a Rússia e a China. Até certo ponto, forças populares organizadas podem pressionar os governos nessa direção, mas há poucos sinais disso, hoje, por várias razões.
Noutro nível, tensões religiosas parecem estar em ascensão. Já em 2004 o rei Abdullah da Jordânia falou de um “Crescente Xiita”. A imagem de uma guerra por procuração entre sunitas e xiitas é apropriada para compreender os atuais conflitos na região?
Uma das consequências mais sombrias da agressão dos EUA e Reino Unido ao Iraque foi acender conflitos entre sunitas e xiitas que já haviam sido controlados, levando a uma história de horror que está a despedaçar o Iraque e a espalhar-se pela região, com efeitos terríveis e ameaçadores.
E a honestidade nos levaria a recordar o julgamento de Nuremberg, um dos fundamentos do direito internacional moderno. Definiu-se que a agressão seria “o supremo crime internacional, diferindo de outros crimes de guerra na medida em que contém, em si, o mal acumulado no todo”. Isso inclui os conflitos sectários, entre muitos outros crimes. A honestidade também nos levaria a recordar a frase que Robert Jackson, um membro da Suprema Corte dos EUA, proferiu no mesmo tribunal: estamos a dar a esses réus “um cálice envenenado”; se cometermos crimes semelhantes, devemos sofrer as mesmas consequências – ou então este Tribunal é uma farsa, não passa de justiça dos vencedores. Uma medida do abismo entre a cultura moral-intelectual do Ocidente e sua civilização é o quão bem estas palavras foram ouvidas…

Tradução de Inês Castilho para o site Outras Palavras.

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