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sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Vicenç Navarro : As limitações de Nelson Mandela

Artigo publicado por Vicenç Navarro na coluna “Dominio Público” no diário PÚBLICO

Este artigo assinala que a estratégia antirracista de Nelson Mandela era necessária porém insuficiente para melhorar o bem estar e qualidade de vida das classes populares da África do Sul.


Na semana passada vimos a homenagem dos líderes de um grande número de países, incluindo as principais democracias ocidentais e  dos maiores meios de comunicação, ao ex-presidente Nelson Mandela, que morreu há dez dias, despertando, assim, um celeuma no reconhecimento internacional. Sua vida e liderança foram dedicados à causa da eliminação do apartheid, um sistema em que cerca de quatro milhões de brancos dominaram e exploraram alguns quarenta milhões de negros sem que estes tivessem  o menor direito político, trabalhista, social ou civil,  reconhecido pelos primeiros. Terminar com aquele sistema, com a disponibilização dos direitos políticos para a maioria da população (negros), foi considerado um dos seus maiores sucessos.

No entanto, o que é mais acentuado por alguns dos líderes dos principais países ocidentais (que haviam apoiado o sistema do apartheid, incluindo o governo dos EUA e o governo britânico) é o seu reconhecimento e perdão à população exploradora, isto é, a população branca. É nesta dimensão da reconciliação com o seu adversário e perdão, o que é mais enfatizado. Ele se apresentou como a grandeza de seu caráter. Tendo sofrido muito - 27 anos de prisão - quando saiu soube se reconciliar com seus carcereiros, aos quais apertou a mão. Esta situação, de admiração com a reconciliação e perdão, tem um grande apelo entre aqueles que foram responsáveis​​, direta ou indiretamente, desse sistema. Entre eles estava o governo federal dos EUA, que enviou ao funeral todos os presidentes vivos (Obama, Clinton e Bush júnior), exceto Carter e Bush pai, o mesmo governo cuja  agência CIA desempenhou um papel fundamental na sua prisão (Joseph Albright e Marcia Kunstel, "Ex- oficial: A CIA ajudou a por  Mandela na prisão", 10 de junho, 1990). É notável o quão pouco se tem escrito sobre o tremendo apoio dos chamados países democráticos (EUA e Europa Ocidental ) com o sistema de apartheid.


Mas há uma outra causa da mobilização maciça em homenagem a Mandela. É sua ênfase na eliminação do racismo, sem tocar no classismo. Vamos ver os dados. Os períodos em que Nelson Mandela viveu foram marcados pela Guerra Fria, quando o Ocidente considerava o comunismo e a União Soviética como o inimigo. Em qualquer país onde houvesse uma grande exploração (de raça, de classe) era provável que surgisse o comunismo, o que também foi percebido desta forma pela União Soviética, que durante muitos anos foi o único país que apoiou o movimento de libertação negra ANC, mais tarde liderado por Mandela. O Partido Comunista Sul-Africano se distinguira nesta luta, sendo uma parte muito importante deste movimento de libertação, como Mandela, disse em sua aparição em 20 de abril de 1964, no Supremo Tribunal do regime do apartheid, que o condenou à prisão perpétua. O Partido Comunista, praticamente o único partido multirracial, enfatizou a luta de libertação da população negra, ligando-o com a luta de classes sob sua sensibilidade marxista. Mandela, em seu depoimento, criticou, em seu comparecimento perante o Supremo Tribunal Federal, essa ênfase na luta de classes, com a clara tentativa de distanciar-se do partido. O que o ANC desejava -disse Mandela - era uma sociedade com sistemas políticos semelhantes existentes nos EUA e na Grã-Bretanha ( sistemas democráticos que definiu como exemplares) sem conflitos entre as classes. Ele disse no mesmo discurso, que "enquanto o Partido Comunista enfatiza a diferença de classe, o ANC procura viver em harmonia, considerando-se a distinção entre o ANC e SACP como essencial para distingui-los."

Raça ou Classe, ou Raça e  Classe

Quando li esse discurso Pensei em outros líderes negros identificados com a luta contra o racismo. Um deles foi Martin Luther King (que eu nunca conheci) e outro Jesse Jackson (que  conheci e com quem eu trabalhava como consultor para suas campanhas eleitorais em 1984 e 1988, para a Presidência EUA). Martin Luther King enfatizou durante toda a sua vida sobre a necessidade de eliminar o racismo. Mas uma faceta desconhecida (na verdade escondida pelos grandes meios de comunicação) foi a sua radicalização ao longo de sua vida  ver meu artigo "O que não é dito sobre Martin Luther King", Público. 3.9.13), de modo que duas semanas antes de ser morto indicou que luta existente nos EUA era a luta de classes. Em outras palavras, disse que sem que a maioria da população negra (que pertencia à classe trabalhadora americana) respondesse a exploração de classe com outros setores da classe trabalhadora, rebelando-se juntos contra essa exploração, a maioria dos negros continuariam em uma situação de subordinação, dominação e humilhação. Seu assassinato resultou precisamente na ameaça de que esta mensagem significa para aqueles que se beneficiam de tal exploração. A legislação anti-racista havia permitido o surgimento de uma classe média negra, sem afetar positivamente a grande maioria da população negra. Na realidade, essas classes médias agem como um freio sobre as mudanças na estrutura de classes do país.

Algo semelhante aconteceu em 1984, quando Jesse Jackson (considerado o discípulo favorito de Martin Luther King) foi apresentado (contra o meu conselho) como o porta-voz da minoria negra nos EUA, enfatizando a necessidade de quebrar as barreiras raciais naquele país. Eu pensei que esta ênfase, mesmo quando necessária, não fosse suficiente para libertar a maior parte da população negra dos EUA. O establishment americano, incluindo a sua maior mídia (The New York Times, The Washington Post, Time Magazine, e  a grande maioria) escreveram artigos apoiando sua posição em nome da população negra. Em 1988, no entanto, seguindo o conselho de seus assessores de a esquerda, ele se apresentou como o porta-voz da classe trabalhadora dos EUA (composta por negros, brancos, amarelos e todas as raças). O establishment, em seguida, recebeu-o com grande hostilidade. Após um discurso denunciando a luta de classes que estava acontecendo nos EUA todos os dias (sem nunca ter sido definida como tal) encorajou a classe trabalhadora a responder como uma classe em vez de componentes e/ou idade de classe raciais. Jesse Jackson recebeu o maior número de votos que até então tinha obtido qualquer candidato negro. E é aí que Mandela falhou. Hoje, há uma classe média na África do Sul, mas a grande maioria dos sul-africanos vivem na pobreza. Além disso, a falta de sensibilidade para a importância da existência de classes sociais fizeram Mandela vulnerável à sua coaptação  pelas classes dominantes. Mandela solicitou fundos para os 50 maiores industriais da África do Sul (um milhão de rands, o equivalente a 250.000 euros cada) para financiar a campanha eleitoral do CND. E ele abandonou sua tentativa de intervir na economia sul-Africana, afetando os interesses comerciais da estrutura de poder branca (Bill Keller, Mandela como dissidente, Estadista e Libertador). Ao invés de mudança foi a incorporação do aparelho do ANC na estrutura do Estado, com a participação de líderes desse movimento no sistema de gestão econômica na África do Sul, sem alterá-lo. Hoje, a África do Sul é um dos países mais desiguais do mundo, com a maioria da população negra presa na pobreza.

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