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segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Isto é a América em 2014? O que presenciei em Ferguson foi espantoso

A imagem duma pessoa afroamericana desafiando a autoridade é algo raro. Ainda mais estranho é ver a polícia com capacetes postos, a usar armas semiautomáticas, carregando escudos e diante de veículos blindados. Tudo isto se estava a passar a poucos metros da pequena urbanização digna de se ver num postal típico do que é o coração dos Estados Unidos. 

Por Errin Whack, jornalista da cadeia Fusion.

“Eles não querem lutar; querem disparar”, diz um manifestante, referindo-se à polícia.
Parece-me incrível o que se passou há apenas umas poucas horas. Andava eu a tratar de evitar que me alcançasse uma nuvem de gás lacrimogêneo que invadia uma urbanização de belos jardins no coração dos Estados Unidos, enquanto uns policias se lançavam ao meu amigo e colega, o jornalista Wesley Lowery, contra uma máquina de venda de refrescos, e depois detiveram-no perto dali.  
Vim a Ferguson, Missouri, como parte do meu trabalho para a Fusion, à procura de respostas depois da morte de um adolescente afroamericano pelas balas de um polícia. Desde que cheguei, procurei compreender algo da dinâmica entre a comunidade e as autoridades locais, esperando que qualquer perspicácia obtida me pudesse servir para explicar a tragédia.   
Esta noite fui testemunha material da dita dinâmica.
Uma das minhas fontes convidou-me para reunir com ele no seu bairro, a poucos minutos da loja QuikTrip, já queimada e saqueada, onde dezenas de jovens, na sua maioria afroamericanos, se juntaram em cada noite para protestar de maneira pacífica a morte de Michael Brown Jr. O sitio não é muito longe de onde Brown morreu crivado por balas na noite de sábado passado. Em cada noite ocorreram altercados com a polícia em áreas confinantes.
Uma hora antes, tinha enviado uma mensagem de texto a Wesley, que trabalha para o diário Washington Post, para averiguar se se encontrava bem. Respondeu-me dizendo que estava muito perto num McDonald’s. Trocámos algumas piadas e depois dirigi-me para Ferguson.
A minha experiência, a cobrir notícias durante os últimos 12 anos, ensinou-me a não estacionar o carro perto do local do acontecimento; de modo que estacionei uns quarteirões antes e fui a pé até ao lugar do protesto. Deparei-me com uma cena surreal: música religiosa a todo volume desde um altifalante perto dumas mulheres que rezavam; um grupo de jovens a dançar e cantar; e uma multidão muito incomodada, na sua maioria jovens afroamericanos, esquivando-se dos polícias que bloqueavam o outro extremo da rua.
A imagem duma pessoa afroamericana desafiando a autoridade é algo raro. Ainda mais estranho é ver a polícia com capacetes postos, a usar armas semiautomáticas, carregando escudos e diante de veículos blindados. Tudo isto se estava a passar a poucos metros da pequena urbanização digna de se ver num postal típico do que é o coração dos Estados Unidos.
“Que defendeis vós?” Perguntava um manifestante.
“Eles não querem lutar; querem disparar”, dizia outro.
“Mie#$% de cobardes”, disse um terceiro.
Os polícias mantiveram-se silenciosos enquanto a multidão desatava a sua frustrada diatribe. Mas as suas ações serviriam para expressar mais do que palavras.
À medida que se aproximava o por do sol, apareceu um helicóptero sobre o local e la atmosfera tornou-se cada vez mais tensa. Os polícias vociferavam através dum megafone, dando ordens aos manifestantes: “Façam o favor de se retirarem dos veículos. Mantenham um protesto pacífico. Precisam de se afastar do veículo. Afastem-se, AGORA!
Um dos polícias levantou-se num dos veículos blindados e apontou a sua espingarda para a multidão, pondo o grupo na mira da espingarda. Tirei uma foto com o meu iPhone e senti calafrios ao pensar que este homem poderia disparar contra alguém mais tarde.
Das dezenas de polícias alinhados contra os manifestantes, só três eram afroamericanos. O resto, apenas visíveis por trás do seu equipamento antimotim, pareciam ser brancos. Um dos polícias aguentava a trela dum cão/pastor alemão.
Em Ferguson, quase 70% dos residentes são afroamericanos e mais ou menos 30% são brancos, segundo os dados mais recentes do Censo. A composição racial da multidão era 9:1 afroamericanos/brancos. Mas os afroamericanos só são 6 por cento da força policial.
Depois duns minutos, o sol ocultou-se atras das árvores e preparei-me para o eminente confronto. A polícia local tinha estado a tratar de dissuadir contra os protestos depois do anoitecer e eu já sabia que um confronto seria muito provável.
Grande parte da minha carreira como jornalista tem sido escrever sobre direitos civis; muitas vezes escrevi sobre os acontecimentos das décadas 50 e 60. Algumas das cenas que presenciei esta noite não se diferenciavam muito das coisas que descrevi em histórias daquela época remota. Senti-me como estivesse num filme.
Tal como se o por do sol fosse um relógio, ouviu-se o estalido duma garrafa entre a multidão. Logo a seguir ouviu-se a voz da polícia: “Isto já não é um protesto pacífico. Necessitam de dispersar já.” Quase simultaneamente e antes que ninguém pudesse sair da zona, a polícia começou a lançar bombas lacrimogéneas para a multidão.
Começámos a correr. Noutras ocasiões tinha respirado gás pimenta e não tinha vontade de repetir a experiência. O gás estendia-se rapidamente, mais rápido do que conseguíamos correr. Começaram a arder-me os olhos e o nariz. Andei mais depressa. 
Acabou por ser mais difícil dispersar do que esperava. Com poucas opções para conseguir um caminho de escape, metemo-nos por um parque para chegar ao bairro onde vive a pessoa que me serve de fonte. Fomos a pé até à sua casa e esperámos até que o distúrbio diminuísse.
Depois de mais de uma hora atrevemo-nos a sair para regressar ao carro. O cheiro a gás lacrimogéneo sentia-se levemente no bairro, não estando muito longe. Mas antes que pudéssemos sair do bairro o cheiro tornou-se mais forte. Tinha caído uma bomba lacrimogénea na rua dentro da urbanização - longe de qualquer protesto. O céu luzia acalentado pelo fumo. Numa zona ali perto estalavam bombas lacrimogéneas e granadas de atordoamento. Voltamos para casa.
Mais cedo, nesta mesma noite, antes de me dirigir a este bairro, tinha assistido a uma conferência de imprensa convocada por Jon Belmar, Chefe da Polícia do Condado de San Luis. Quando lhe perguntaram sobre o uso de gás lacrimogéneo, por parte dos seus polícias, Belmar disse aos repórteres que não tinha “encontrado outros meios para dispersar as pessoas que fossem efetivos”. Belmar descartou a ideia do estado de emergência, dizendo que as pessoas sem lei “não prestam atenção a isso”.
Mas claramente isto era um estado de emergência de facto que não distinguia entre aqueles que vivem sem lei e os residentes que obedecem às leis. Parecia que a polícia tinha o bairro sitiado e que já não se poderia sair dali.
Mas sabia que, ao fim ao cabo, eu poderia sair ao contrário dos residentes desta comunidade, que tiveram que aguentar estas condições durante os últimos quatro dias. Já se torna mais fácil ver porque é que os residentes desconfiam dos polícias a que foram designados para servir e proteger a sua comunidade. Aqui não existe boa vontade.
Permaneci, sentindo-me agitada, enquanto esperava sair do bairro. Inteirei-me que as coisas estavam pior para Wesley. Tinham-no preso naquela McDonald’s. Mesmo que fosse depois posto em liberdade, o incidente parecia ser uma prova adicional de que o departamento da polícia operava de maneira inconsulta e injusta. Durante o processo, dois jornalistas foram detidos de maneira injusta, com outros cidadãos que não puderam sair do restaurante com a rapidez que exigiam os polícias.
Depois doutra hora mais, decidimos tentar de novo sair do bairro. Ao aproximarmo-nos da entrada da urbanização, uma muralha de luzes azuis bloqueava a saída. Quando tentámos passar, os polícias disseram-nos que esperássemos, enquanto q tratavam duma situação. Depois de mais ou menos 15 minutos, o cruzamento ficou aberto e, por fim, pudemos chegar ao carro e sair dali.
Fiquei a pensar, como é possível que cidadãos dos Estados Unidos possam ser tratados desta maneira. Este maltrato será como um soco para uma comunidade que sofre na carne a morte de um dos seus. Afastei-me desse bairro rapidamente, ansiosa de afastar-me da fealdade do que acabava de presenciar. 
Notas:
* Errin Whack é jornalista na cadeia de notícias FUSION.
Tradução: António José André

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