O mundo árabe e a nova desordem mundial - Blog A CRÍTICA

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domingo, 21 de setembro de 2014

O mundo árabe e a nova desordem mundial

Entre a “decadência” norte-americana e a falta de alternativas, nenhum acontecimento acelerou e revelou melhor ambos os processos que as fracassadas revoluções árabes e o surgimento do seu seio - ou do seu fracasso - do Estado Islâmico (EI). 

Por Santiago Alba Rico

Hoje quase ninguém se ocupa da Líbia, mas quando alguém o faz é para resumir sumariamente o “caos” reinante como resultado de um conflito entre “liberais” e “islamistas”. A realidade é bem mais rica e, se quisermos, mais inquietante










O número de setembro da prestigiada revista francesa Espritaborda numa detalhada análise o que chama de forma eloquente “nova desordem mundial”. Poder-se-ão compartilhar ou não as análises concretas a alguns conflitos regionais, mas é difícil negar os dois pressupostos que, na opinião dos colaboradores da publicação, explicam esta “desordem” cuja expressão mais evidente são a situação da Ucrânia e a do Oriente Médio. Esses dois pressupostos são 1) a decadência rapidíssima da hegemonia norte-americana (e, como tal, europeia), que teria durado apenas uma geração (1989-2003) e que não teria sobrevivido ao aventureirismo criminoso de Bush no Iraque, e 2) a incapacidade das chamadas potências emergentes (em torno do grupo BRICS) para oferecer alternativas, tanto no plano – digamos - civilizacional como no puramente pragmático da resolução global de conflitos. A globalização econômica, cujas “crises” muito destrutivas para as populações têm obrigado a acordos e negociações entre Estados capitalistas, não tem sido acompanhada de uma globalização política capaz de evitar ou amortecer os conflitos, nem sequer de maneira ‘injusta’, como ocorria sob o extinto sistema de blocos no século passado.
Entre a “decadência” norte-americana e a falta de alternativas, nenhum acontecimento acelerou e revelou melhor ambos os processos que as fracassadas revoluções árabes e o surgimento do seu seio - ou do seu fracasso - do Estado Islâmico (EI), uma “organização militar” e não só “terrorista” - para recordar as recentes declarações de um responsável do Pentágono - que não conta com o patrocínio ou apoio de nenhum Estado, que basicamente se auto-financia e que se tornou forte precisamente onde a ausência de Estado (resultado de invasões estrangeiras ou ditaduras criminosas) acelera a fermentação de sangrentos impulsos de imediatismo comunitário.
Obama não vai solucionar nada com bombardeamentos a posições jihadistas. Pelo contrário. Como escrevi noutras vezes, a falta de democracia (que ninguém quer para a zona), as intervenções imperialistas e as ditaduras alimentam e legitimam os movimentos islamistas radicais
Em qualquer caso, a aceitação destes dois pressupostos muito ajustados – na minha opinião - à realidade exclui de qualquer análise geopolítica sensata tanto as que, à direita, continuam a justificar e a alentar o papel “humanitário” e “estabilizador” dos EUA contra os “Estados párias” como as que, à esquerda, continuam a ver ‘cada’ situação como o resultado de um plano dos EUA, e face a esse plano sempre vitorioso, veem na Rússia, na China ou no Irã (ou na Síria de Bachar Al-Assad!) um potencial mais desinteressado ou mais emancipatório.
Como digo, as revoluções árabes que começaram na Tunísia em 2011 revelaram e aceleraram a decadência imperial dos EUA e nada o prova melhor que os casos da Líbia e de Iraque-Síria.
Há dias o eurodeputado do Podemos Pablo Iglesias fez uma corajosa, imponente e quase refrescante denúncia no parlamento de Bruxelas para recordar com razão que, desde o ano 2000 e até março de 2011, Khadafi foi “o nosso filho da puta” na região (contratos petrolíferos, política migratória, venda de armas) e que, se de imediato foi aprovada no Conselho de Segurança da ONU a resolução 1973 que abriu caminho aos bombardeamentos da OTAN, não foi para proteger uma população até esse momento abandonada à sua sorte. Mas haveria que acrescentar que a participação dos EUA nessa aventura foi bem mais distante e rezingona, que o papel mais ativo foi assumido pela França e que aí, juntamente com o pragmatismo petrolífero, havia razões políticas ‘nacionais’ relacionadas sem dúvida com o financiamento eleitoral do ex-presidente Sarkozy. Também há que recordar que Rússia e China, tal como UE e EUA, tinham contratos petrolíferos com Khadafi e que não se opuseram à resolução 1973: a sua abstenção, quando podiam ter utilizado o veto, era uma forma de autorizar a intervenção demarcando-se cautelosamente dos seus efeitos incertos. Ninguém, pois, defendeu Khadafi, mas ninguém defendeu também o povo que se tinha rebelado contra ele (nem o que supostamente apoiava o ditador). A intervenção precipitada da OTAN, impulsionada pela França, tinha como objetivo – para além da liquidação física de Khadafi - evitar que fossem os próprios rebeldes a derrubar a ditadura (como explica o grande historiador anti-imperialista Vijay Prashad). De fato, o plano ocidental consistia em dar continuidade ao regime através de um Conselho Nacional Líbio, composto sobretudo por desertores ‘liberais’, que mantivesse os acordos energéticos e migratórios com a UE.
Imperialismos, ditaduras e jihadismos são as forças do passado contra as quais se levantaram há três anos os povos da região
Esse plano fracassou, e não só porque a Líbia viu reduzida a sua produção de petróleo em 90%, mas porque a chamada “somalização” do país deixa pouca margem de intervenção aos EUA (e à UE). Hoje quase ninguém se ocupa da Líbia, mas quando alguém o faz é para resumir sumariamente o “caos” reinante como resultado de um conflito entre “liberais” e “islamistas”. A realidade é bem mais rica e, se quisermos, mais inquietante. Como sabemos, agora há dois governos na Líbia. Um com sede em Tobruk, a 1.600 km a leste da capital, encabeçado por Abdala Athani, que atribui a sua legitimidade eleitoral às eleições do mês de junho e que na realidade se apoia no obscuro coronel Haftar que, no passado mês de maio, deu um golpe de Estado - na linha de Sisi no Egito - contra a Irmandade Muçulmana. Haftar, desertor do exército de Khadafi nos anos 70, formou-se depois nos EUA, mas a sua retórica “nacionalista” e “anti-islamista” atraiu a si partidários do antigo regime. Este governo, chamado “liberal”, é apoiado por Arábia Saudita, Egito e Emirados (que, segundo denunciou a administração Obama, bombardearam território líbio em agosto).
O governo instalado em Tripoli, o denominado “islamista”, presidido por Omar Al Hasi, nasceu na realidade da operação ‘Amanhecer da Líbia’ que, em nome da ‘revolução’, lançou contra Haftar a milícia de Misrata, sem dúvida a mais poderosa de todas as que se combatem no país. Esta operação, que taticamente apoiou, em Benghasi, os islamistas radicais de Ansar Acharia, afastou-se depois deles para formar um governo que, por razões comerciais e históricas, é claramente dominado pela Irmandade Muçulmana e pelo seu partido Justiça e Construção, cujo líder, Mohamed Sawan, é natural de Misrata. Terceira cidade do país, Misrata conta não só com o prestígio dos seus “mártires” mas também com a sua atividade comercial - em torno do porto - e com os seus laços econômicos e políticos com Qatar e Turquia, países que apoiam o Congresso Geral Nacional de Tripoli (ver, por exemplo, este link).
A Líbia converteu-se noutro campo de batalha da guerra regional entre a aliança Arábia Saudita/Egito e a Irmandade Muçulmana (apoiada por Turquia e Qatar). Os EUA (e a UE) têm ido sempre a reboque e têm até dificuldade em tomar partido
A Líbia, portanto, converteu-se noutro campo de batalha da guerra regional entre a aliança Arábia Saudita/Egito e a Irmandade Muçulmana (apoiada por Turquia e Qatar). Os EUA (e a UE) têm ido sempre a reboque e têm até dificuldade em tomar partido. Longe de dominarem a situação, pode dizer-se que o concretíssimo caos líbio, com as suas relações de força internas, é a prova evidente de que os que bombardearam e mataram Khadafi ficaram - de momento - bastante fora de jogo.
No caso da Síria e do Iraque, acontece o mesmo, à exceção de que ali o jogo - um jogo que já não dominam - os obriga a intervir militarmente de novo. A calculada timidez do apoio norte-americano à revolução síria contra Bachar Al-Assad, inclusive depois do uso de armas químicas em Ghouta (casus belli ideal para uma intervenção que nunca quiseram), contrasta sem dúvida com a celeridade com que a administração Obama aprova hoje o envio de armamento aos curdos e aos rebeldes que antes ignorou e que combatem também contra o EI. E, certamente, contrasta com a diligência dos novos bombardeamentos do Iraque, pactuados com todas as potências da zona, incluindo Síria e Irão (com a exceção da relutante Turquia). Os EUA não apoiaram os sírios que protestavam contra a ditadura, pois tentavam debilitar o regime de Damasco sem o derrubar, e o resultado é o EI e o apocalipse regional. A sua cumplicidade na “grande conspiração” contra as revoluções árabes não só os obriga hoje a negociar com os seus inimigos em condições menos favoráveis, mas também a se envolverem militarmente numa aventura que acelerará a sua perda de protagonismo e influência na região.
O mundo árabe volta a estar governado por forças que na realidade estão mortas; isto é, por zombiesque se apoiam entre si, enquanto se alimentam dos vivos, e que, por muito mortos que estejam, podem continuar a governar, durante anos ou até séculos, toda a zona
Se na Síria o responsável direto da irrupção do EI é Bachar Al-Assad (e Obama o responsável indireto), os responsáveis diretos de tudo o que acontece no Iraque são sem dúvida os EUA: as centenas de milhares de mortos, a destruição do Estado e das suas infraestruturas básicas, a guerra sectária, a entrada no país da Al-Qaeda e depois do EI. Quanto ao responsável indireto é sem dúvida o Irã. Mas Obama não vai solucionar nada com bombardeamentos a posições jihadistas. Pelo contrário. Como escrevi noutras vezes, a falta de democracia (que ninguém quer para a zona), as intervenções imperialistas e as ditaduras alimentam e legitimam os movimentos islamistas radicais. Imperialismos, ditaduras e jihadismos são as forças do passado contra as quais se levantaram há três anos os povos da região. O mundo árabe volta a estar governado por forças que na realidade estão mortas; isto é, por zumbis que se apoiam entre si, enquanto se alimentam dos vivos, e que, por muito mortos que estejam, podem continuar a governar, durante anos ou até séculos, toda a zona - se não triunfar a revolução dos povos que todos, a direita e a esquerda, abandonaram em 2011.
Não seria mau que saíssemos às ruas manifestando-nos ao mesmo tempo a favor dos sírios e iraquianos que querem democracia, dignidade e justiça social e contra os bombardeamentos norte-americanos
Entretanto, não seria mau que saíssemos às ruas manifestando-nos ao mesmo tempo a favor dos sírios e iraquianos que querem democracia, dignidade e justiça social e contra os bombardeamentos norte-americanos. Face ao EI - dá a impressão, a beligerância anti-imperialista dos que apoiavam Khadafi e hoje apoiam Damasco, Teerã e Moscou baixou muitos graus. Quanto aos que atiçam a islamofobia e a confrontação de culturas e reclamam mais e mais bombardeamentos, mais OTAN e mais guerra anti-terrorista, são na realidade os padrinhos dos jihadistas que dizem combater.
Artigo de Santiago Alba Rico, filósofo, publicado em cuartopoder.es. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

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