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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Hume - Do contrato original

David Hume
Se tivermos em conta que todos os homens são aproximadamente iguais em força física, e mesmo em poder e capacidade mental, antes de cultivados pela educação, teremos necessariamente de admitir que só o consentimento de cada um poderia, ao princípio, levá-los a associarem-se e submeterem-se a qualquer autoridade. O povo, se remontarmos à primitiva origem do governo nas florestas e nos desertos, é a fonte de todo e qualquer poder e jurisdição; voluntariamente, para bem da paz e da ordem, os homens renunciaram à sua liberdade natural e acataram leis ditadas pelos seus iguais e companheiros. As condições sob as quais se dispuseram à submissão ou foram expressas, ou eram tão claras e óbvias que se podia perfeitamente considerar inútil exprimi-las. Ora, se é isto que se entende por contrato original, é inegável que todo o governo assenta, de início, num contrato, e que as mais antigas e toscas associações humanas se constituíram essencialmente em virtude desse princípio. Seria inútil perguntar em que registros consta essa carta das nossas liberdades: não foi escrita em pergaminho, nem em folhas ou cascas de árvores; precedeu o uso da escrita e de todas as outras artes civilizadas da vida. Mas descobrimo-la claramente na natureza do homem, na igualdade, ou algo semelhante à igualdade, que verificamos existir entre todos os indivíduos dessa espécie. A força que atualmente predomina, baseada nas frotas e nos exércitos, é apenas política, e deriva da autoridade, a qual é consequência da instituição do governo. A força natural de um homem consiste apenas no vigor dos seus membros e na firmeza da sua coragem, qualidades estas que jamais poderiam submeter multidões ao domínio de um só homem. Só o seu próprio consentimento, e a sua noção das vantagens resultantes da paz e da ordem, poderia ter essa influência. Todavia, mesmo esse consentimento foi durante muito tempo extremamente imperfeito, não podendo assim servir de base para uma administração regular. O chefe, que provavelmente conseguira a sua influência no decurso da guerra, governava mais pela persuasão do que pelo mando e, até ao momento em que começou a poder usar a força para subjugar os refratários e desobedientes, mal se pode dizer que a sociedade tenha atingido o estado de governo civil. É evidente que não foi expressamente celebrado qualquer pato ou acordo de submissão geral, pois tal estaria muito além da compreensão de selvagens: cada caso em que foi estabelecida a autoridade de um chefe deve ter sido um caso especial, que surgiu devido às exigências de cada circunstância particular. A evidente utilidade resultante dessa medida fez que tais casos se tornassem cada vez mais frequentes, e esta frequência foi gradualmente fazendo surgir no povo uma aquiescência habitual e, se assim quiserem chamar-lhe, voluntária, e portanto precária.

Mas aqueles filósofos que aderiram a um partido (caso isto não seja uma contradição nos termos) não se satisfazem com estas concessões. Não se limitam a afirmar que o governo, na sua primitiva infância, teve origem no consentimento, ou antes, na aquiescência voluntária do povo; afirmam além disso que, mesmo atualmente, agora que chegou à maturidade plena, continua a ter esse único fundamento. Afirmam que todos os homens continuam a nascer iguais e não devem fidelidade a qualquer príncipe ou governo, caso não estejam presos pela obrigação e sanção de uma promessa. E como nenhum homem iria renunciar, sem em troca receber alguma coisa equivalente, às vantagens da sua liberdade natural, submetendo-se à vontade de outro homem, essa promessa deve sempre ser entendida como condicional, sem lhe impor obrigação alguma, a não ser que receba justiça e proteção do seu soberano. O soberano, em troca, promete-lhe estas vantagens e, se acaso deixar de cumprir a promessa, terá violado, pelo seu lado, as cláusulas do compromisso, libertando assim o seu súdito de qualquer obrigação de fidelidade. Tal é, segundo esses filósofos, o fundamento da autoridade de todo e qualquer governo; e tal é o direito de resistência que pertence a todo e qualquer súdito.

Mas, se os que assim argumentam passeassem o seu olhar pelo mundo inteiro, nada encontrariam que tivesse a menor relação com as suas ideias, ou pudesse justificar sistema tão apurado e filosófico. Pelo contrário, em toda a parte encontramos príncipes que consideram os seus súbditos como sua propriedade, e afirmam o seu direito independente à soberania, baseado na conquista ou na sucessão. Encontramos também, em toda a parte, súbditos que reconhecem ao seu príncipe esse direito, considerando-se nascidos já submetidos à obrigação de obediência ao seu soberano, do mesmo modo que nasceram já submetidos à obrigação de respeito e obediência aos seus pais. Estas relações são sempre concebidas como igualmente independentes do nosso consentimento, na Pérsia ou na China, na França ou na Espanha, e até mesmo na Holanda ou na Inglaterra, em todo o lugar onde as doutrinas atrás referidas não foram cuidadosamente inculcadas. A obediência ou sujeição torna-se coisa tão habitual que os homens, na sua maioria, jamais procuram investigar as suas origens ou causas, tal como em relação à lei da gravidade, à resistência ou às leis mais universais da natureza. Ou então, se alguma vez sentem essa curiosidade, logo que ficam a saber que eles próprios e os seus antepassados têm estado sujeitos, desde há várias épocas ou desde tempos imemoriais, a certa forma de governo ou a certa família, imediatamente concordam, reconhecendo a sua obrigação de fidelidade. Na maioria dos países, se lá fôssemos proclamar que as relações políticas assentam inteiramente no consentimento voluntário ou numa promessa recíproca, depressa o magistrado nos mandaria prender como sediciosos, por enfraquecermos os laços da obediência; se antes disso os nossos amigos nos não mandassem internar como loucos, por defender tais absurdos. É estranho que um ato do espírito, que se supõe todo e qualquer indivíduo tenha realizado, e isso já depois de poder fazer uso da razão, pois caso contrário não poderia ter autoridade alguma, que esse ato, dizia eu, seja a tal ponto desconhecido por todos que em toda a superfície da Terra mal restam dele quaisquer vestígios ou lembranças.

Mas diz-se que esse contrato em que o governo assenta é o contrato original, e portanto deve ser considerado demasiado antigo para poder ser conhecido pela geração atual. Se com isto se quer referir o acordo mediante o qual selvagens pela primeira vez se associaram e conjugaram as suas forças, ele deve ser reconhecido como real; mas sendo tão antigo, e estando já obliterado por mil mudanças de governo e de príncipe, não é lícito supor-se que conserve ainda qualquer autoridade. Se alguma coisa devemos dizer a tal respeito, é forçoso afirmar que qualquer governo, que seja legítimo e ao qual os súbditos tenham o dever de prestar fidelidade, assentava inicialmente no consentimento e num pacto voluntário. Mas isto, além de implicar o consentimento, por parte dos pais, em vincular os seus filhos, mesmo até às gerações mais remotas (coisa que os autores republicanos jamais admitirão), além disso, dizia eu, tal facto não é justificado pela história ou pela experiência, em qualquer época ou em qualquer país do mundo.

Quase todos os governos atualmente existentes, ou dos quais algo ficou registado na história, assentaram inicialmente na usurpação ou na conquista, ou em ambas, sem qualquer pretensão de legítimo consentimento ou sujeição voluntária do povo. Quando à frente de um exército ou de um partido se encontra um homem experimentado e audacioso, frequentemente se lhe torna fácil, empregando umas vezes a violência e outras vezes falsas pretensões, impor o seu domínio a um povo cem vezes mais numeroso do que os seus partidários. Impede a liberdade de comunicações, para que os seus inimigos não possam saber com segurança o seu número ou força; não lhes concede lazer para se reunirem num corpo que lhe seja contrário; é até possível que todos aqueles que são instrumentos da sua usurpação desejem a sua queda; mas a ignorância em que se encontram das intenções uns dos outros conserva-os amedrontados, e é a única causa da segurança do chefe. Foi mediante tais artifícios que muitos governos foram fundados, e a isto se resume todo o contrato original de que se podem vangloriar.

A face da Terra está permanentemente em mudança, devido à transformação de pequenos reinos em grandes impérios, à dissolução de grandes impérios em reinos menores, à fundação de colônias, à migração de tribos. Será possível descobrir, em todas estas ocorrências, algo mais do que força e violência? Onde está o acordo mútuo, a associação voluntária de que tanto se fala?

Mesmo a maneira mais suave mediante a qual uma nação pode receber um senhor estrangeiro, por casamento ou testamento, não é extremamente honrosa para o povo, pois supõe que ele pode ser tratado como um dote ou uma herança, conforme o prazer ou os interesses dos governantes.

Mas nos casos em que não há intervenção da força e se realiza uma eleição, que coisa é essa tão louvada eleição? Ou é uma combinação entre alguns grandes homens, que decidem por todos e não permitem oposição alguma, ou é o furor de uma multidão que segue um sedicioso cabeça de motim, o qual talvez não seja conhecido por uma dúzia de entre eles, e deve o lugar que ocupa apenas à sua própria impudência ou ao capricho momentâneo dos seus companheiros.

Poderá dizer-se que estas desordenadas eleições, que além do mais são raras, são detentoras de tão poderosa autoridade que faça delas o único fundamento legítimo de todo o governo e de toda a fidelidade?
Na realidade, nenhuma ocorrência pode ser mais terrível do que a total dissolução do governo, que dá liberdade à multidão e faz depender a determinação ou escolha do novo regime de um número que se aproxima do de todo o conjunto do povo; pois nunca atinge inteiramente todo esse conjunto. Portanto, todo e qualquer homem deseja ver, à frente de um exército poderoso e obediente, um general que seja capaz de alcançar rapidamente a vitória, dando um senhor ao povo, que é tão incapaz de por si mesmo o escolher. Tão pequena correspondência há entre essas noções filosóficas e a realidade dos fatos.

Não deixemos que o regime saído da Revolução nos iluda, ou nos faça apaixonar por uma origem filosófica do governo a ponto de imaginarmos que todas as outras são monstruosas e irregulares. Mesmo esse acontecimento esteve longe de corresponder a essas ideias subtis. A única coisa que então mudou foi a sucessão, e mesmo esta apenas na parte monárquica do governo; e foi apenas a maioria de setecentos que determinou essa mudança, em nome de cerca de dez milhões. Evidentemente não duvido de que a maioria desses dez milhões tenha concordado de boa vontade com essa determinação; mas acaso o problema foi entregue, um pouco que fosse, à sua decisão? Acaso a questão não foi com justiça, a partir desse momento, considerada resolvida, e não passou a ser castigado todo aquele que recusasse submeter-se ao novo soberano? De que outra maneira poderia o problema ter sido resolvido?

A república de Atenas é, segundo creio, a mais ampla democracia de que nos fala a história. Contudo, se levarmos devidamente em conta as mulheres, os escravos e os estrangeiros, esse regime não foi criado, nem jamais qualquer lei foi votada, pela décima parte daqueles que eram obrigados a se lhe submeter. Isto para não referir as ilhas e colônias que os atenienses consideravam suas por direito de conquista. E, visto ser bem sabido que nessa cidade as assembleias populares eram sempre cheias de abusos e desordens, mau grado as instituições e leis que as controlavam, como negar que tais assembleias deverão ser muito mais desordenadas quando não seguem a constituição estabelecida, mas se reúnem tumultuosamente após a dissolução do antigo governo, a fim de dar origem a um novo? Não será totalmente quimérico falar de uma escolha em tais circunstâncias?

Os aqueus gozavam da democracia mais livre e mais perfeita de toda a antiguidade, e todavia, como nos diz Políbio, usaram da força para obrigar algumas cidades a entrar para a sua liga.

Henrique IV e Henrique VII da Inglaterra não possuíam realmente outro título ao trono senão uma eleição parlamentar; contudo jamais o reconheceram, pois isso iria enfraquecer a sua autoridade. Muito estranho, se o consentimento e as promessas são o único fundamento verdadeiro de toda a autoridade!
É inútil dizer que todos os governos são ou devem ser criados com base no consentimento popular, na medida em que a necessidade das coisas humanas o permitir. Isto é totalmente favorável à ideia que defendo. Afirmo que jamais as coisas humanas permitirão tal consentimento, e raramente algo que aparente sê-lo; e que a conquista ou a usurpação, ou mais simplesmente a força, mediante a dissolução dos antigos governos, é a origem de quase todos os novos governos que o mundo viu nascer. E que, nos poucos casos em que possa parecer ter havido um consentimento, este foi geralmente tão irregular, tão limitado ou tão misturado com a fraude e a violência, que não se lhe pode atribuir grande autoridade.

Não tenho aqui a intenção de negar que o consentimento do povo, quando ocorre, seja um justo fundamento do governo; é sem dúvida o melhor e o mais sagrado de todos. Afirmo apenas que muito raramente se verificou, em qualquer grau, e quase nunca em toda a sua plenitude, e que é portanto forçoso admitir também outro fundamento do governo.

Se todos os homens fossem inspirados por tão inflexível respeito pela justiça que por si sós se abstivessem totalmente da propriedade alheia, teriam ficado para sempre num estado de liberdade absoluta, sem se submeterem a qualquer magistrado ou sociedade política. Mas isso seria um estado de perfeição do qual, com razão, a natureza humana é considerada incapaz. Mais, fossem eles dotados de um entendimento tão perfeito que sempre lhes permitisse saber quais são os seus interesses, jamais teria sido proposta qualquer outra forma de governo que não a que assenta no consentimento e é plenamente votada por todos os membros da sociedade. Mas este estado de perfeição é também totalmente inacessível à natureza humana. A razão, a história e a experiência mostram-nos que todas as sociedades políticas tiveram uma origem muito menos exacta e regular; e, se procurássemos o momento em que nos acontecimentos políticos o consentimento do povo menos é levado em conta, deveríamos escolher precisamente o momento em que é instituído um novo governo. Numa constituição estabelecida, a opinião do povo é frequentemente consultada, mas durante a fúria das revoluções, das conquistas e das convulsões políticas é geralmente a força militar ou a habilidade política que decide a controvérsia.

Quando é instituído um novo governo, seja por que meios for, o povo fica geralmente descontente com ele, e obedece mais por medo e necessidade do que em virtude de qualquer ideia de fidelidade ou de obrigação moral. O príncipe está atento e vigilante, precisando precaver-se cuidadosamente contra qualquer início ou sinais de insurreição.

O tempo vai gradualmente fazendo desaparecer todas estas dificuldades, e habituando o povo a reconhecer como seus príncipes legítimos ou naturais os membros daquela mesma família que de início havia considerado uma família de usurpadores ou conquistadores estrangeiros. E para fundamentar esta opinião não recorrem a qualquer noção de promessa ou consentimento voluntário, o qual bem sabem não ter sido, neste caso, nem esperado nem pedido. A instituição original é feita através da violência, e a submissão deve-se à necessidade.

A administração subsequente é também sustentada pelo poder, e aceite pelo povo, como uma questão de obrigação e não de escolha. O povo não imagina que o seu consentimento confira um título ao príncipe; consente de boa vontade, por pensar que a longa posse lhe conferiu um título, independentemente da sua escolha ou da sua preferência.

Se se objectar que, pelo facto de continuar a viver sob o domínio de um príncipe que seria possível abandonar, cada indivíduo manifesta um consentimento tácito à sua autoridade e lhe promete obediência, poderá responder-se que tal consentimento implícito só pode ter lugar se cada indivíduo pensar que o caso depende da sua escolha. Mas, se cada um pensar (como sucede com todos os homens que nasceram sob um governo estabelecido) que tem desde a nascença deveres de submissão para com um certo príncipe ou uma certa forma de governo, será absurdo inferir um consentimento ou escolha que, neste caso, todos expressamente negam e repudiam.

Será lícito afirmar seriamente que um pobre camponês ou artífice tem a possibilidade de livremente abandonar o seu país, quando não conhece as línguas nem os costumes estrangeiros, e vive apenas o seu dia-a-dia com o pequeno salário que ganha? Seria o mesmo que dizer que um homem, devido ao facto de permanecer num navio, dá o seu livre consentimento à autoridade do capitão, embora tenha sido levado para bordo enquanto dormia, e só lançando-se ao mar e morrendo possa sair desse navio.

E se o príncipe proíbe os súbditos de abandonar os seus domínios, como no tempo de Tibério, quando um cavaleiro romano foi considerado criminoso por ter tentado fugir para a pátria, a fim de escapar à tirania daquele imperador? Ou como quando os antigos moscovitas castigavam toda e qualquer viagem com a pena de morte? E, se acaso um príncipe verificasse que grande número dos seus súbditos era atacado por uma fúria de emigração para o estrangeiro, sem dúvida alguma disso os impediria, e com grande razão e justiça, para evitar o despovoamento do seu reino. Perderia ele o direito à fidelidade de todos os seus súbditos em virtude dessa lei tão sensata e razoável? E neste caso não há dúvida de que os súbditos são privados da sua liberdade de escolha.

Um grupo de homens que abandonasse o seu país natal para ir povoar qualquer região desabitada poderia sonhar com a recuperação da sua liberdade natural; mas depressa viria a descobrir que o seu príncipe continuava a reivindicá-los como seus súbditos, apesar de se encontrarem numa nova colônia. E com esta atitude estaria apenas a agir em conformidade com as ideias mais comuns dos homens.

O exemplo mais autêntico que se pode verificar de um consentimento tácito deste tipo é o do estrangeiro que se instala em qualquer país, conhecendo previamente o príncipe, o governo e as leis a que se irá submeter. Mesmo assim, embora seja mais voluntária, a sua fidelidade é muito menos esperada e exigida do que a de um súbdito nascido no país; pelo contrário, o seu príncipe natural continua a reivindicá-lo. E, se acaso não castiga o renegado, se o captura quando em guerra a serviço do seu novo príncipe, essa clemência não assenta na lei nacional, a qual em todos os países condena o prisioneiro, e sim no consentimento dos príncipes, que combinaram entre si esta indulgência, a fim de evitar represálias.
Se uma geração de homens se retirasse de cena de uma vez só, e lhe sucedesse uma outra, como acontece no caso dos bichos-da-seda e das borboletas, a nova raça, se fosse suficientemente sensata para escolher os seus governantes, coisa que sem dúvida nunca acontece entre os homens, poderia estabelecer voluntariamente e mediante o consentimento geral a sua própria forma de constituição, sem de modo algum levar em conta as leis ou precedentes que dominavam no tempo dos seus antepassados. Mas a sociedade humana está em fluxo permanente, a cada momento há um homem que se retira do mundo e outro que nele entra, e assim torna-se necessário, a fim de preservar a estabilidade do governo, que os membros da nova geração aceitem a constituição estabelecida, seguindo de perto o caminho traçado pelos seus pais, os quais por sua vez fizeram o mesmo, seguindo as pisadas dos seus. Em todas as instituições humanas é necessário introduzir algumas inovações, e são casos felizes aqueles em que o gênio esclarecido da época orienta estas no sentido da razão, da liberdade e da justiça. Mas a nenhum indivíduo é lícito realizar inovações violentas: estas são perigosas mesmo quando feitas pelo legislativo; delas é sempre de esperar maior mal do que bem e, se é certo que a história nos dá exemplos do contrário, mesmo assim estes não podem ser transformados em precedentes, e devem ser apenas considerados como prova de que na ciência política há poucas regras que não admitam certas excepções, e que não possam às vezes ser modificadas pelo acaso. As violentas inovações do reinado de Henrique VIII foram introduzidas por um monarca despótico, sustentado por uma aparência de autoridade legislativa; as do reinado de Carlos I foram causadas pelo partidarismo e pelo fanatismo, e tanto umas como outras deram bons resultados em cada caso. Mas mesmo as primeiras foram durante muito tempo fonte de inúmeras desordens, e de ainda mais perigos; e se as regras da fidelidade forem extraídas das segundas, a sociedade humana tornar-se-á teatro da mais completa anarquia, e todo o governo chegará imediatamente ao seu fim.

Suponhamos que um usurpador, depois de banir o seu príncipe legítimo e a família real, imponha o seu jugo a qualquer país, durante dez ou doze anos, conseguindo manter nas suas tropas uma disciplina tão rigorosa e nas suas guarnições uma ordem tão impecável que jamais se erga qualquer insurreição, nem se ouça qualquer murmúrio contra a sua administração. Poderá neste caso afirmar-se que o povo, que nos seus corações detesta essa traição, deu um consentimento tácito à sua autoridade e lhe prometeu fidelidade, só pelo facto de a necessidade o levar a viver sob o seu jugo? Suponhamos agora que o príncipe legítimo é recolocado no trono, por meio de um exército por ele recrutado em países estrangeiros: o povo recebê-lo-á com alegria e exultação, mostrando claramente com que relutância se tinha submetido a outro jugo. Posso agora perguntar qual o fundamento em que assenta o título do príncipe. Evidentemente não é o consentimento popular, pois, embora o povo de boa vontade aceite a sua autoridade, jamais pensa que foi o seu consentimento que o tornou soberano; se deu o consentimento, foi por considerá-lo já, por nascimento, seu soberano legítimo. Quanto àquele consentimento tácito que agora se pode deduzir do facto de viver sob o seu domínio, nada mais é do que aquele que anteriormente havia dado ao tirano e usurpador.

Ao afirmarmos que qualquer governo legítimo deriva do consentimento do povo, sem dúvida lhe prestamos uma homenagem muito superior à que merece, ou sequer espera e deseja que lhe prestemos. Quando os domínios romanos se tornaram demasiado difíceis de controlar para que a república pudesse governá-los, o povo de todo o mundo conhecido ficou extremamente grato a Augusto pela autoridade que, mediante a violência, sobre ele estabeleceu; e manifestou igual intenção de se submeter ao sucessor que ele indicasse no seu testamento. Posteriormente, teve a desgraça de nunca haver uma família que estabelecesse uma sucessão longa e regular, e que a linhagem dos seus príncipes fosse continuamente interrompida, tanto por atentados pessoais como por rebeliões públicas. De cada vez que caía uma família, a guarda pretoriana escolhia um imperador; as legiões do Leste escolhiam um segundo; as da Germânia, talvez, um terceiro; e só pela espada se decidia a controvérsia. Se nessa poderosa monarquia a condição do povo era digna de lástima, não era pelo facto de nunca ser feita por ele a escolha do imperador, pois isso seria impraticável, mas pelo de nunca ter sido governado por uma sucessão de chefes que se seguissem regularmente uns aos outros. Quanto à violência, às guerras e ao derramamento de sangue que foram provocados pela nova escolha, não devem ser censurados, pois eram inevitáveis.
A casa de Lencastre governou esta ilha durante cerca de sessenta anos, mas os partidários da rosa branca pareciam multiplicar-se todos os dias na Inglaterra; a linhagem actual já está no governo há mais tempo ainda. Terá desaparecido completamente qualquer possibilidade de direitos da outra família, embora na época em que ela foi expulsa quase nenhum homem ainda hoje vivo tivesse já chegado à idade da razão, ou pudesse ter consentido no seu domínio ou a ela ter prometido obediência e fidelidade? O que constitui sem dúvida indicação suficiente da atitude geral dos homens quanto a esse aspecto; porque, se censuramos os partidários da família destronada, não é apenas devido ao longo período durante o qual conservaram a sua imaginária fidelidade; censuramo-los por defenderem uma família que, afirmamo-lo, foi justamente expulsa, e que a partir do momento em que a nova linhagem teve início perdeu todo e qualquer direito à autoridade.
Mas, para apresentarmos uma refutação mais regular, ou pelo menos mais filosófica, desse princípio do contrato original ou consentimento popular, talvez bastem as observações seguintes.
Os deveres morais podem ser divididos em duas espécies. A primeira compreende aqueles a que todos os homens são conduzidos por um instinto ou propensão natural, que exerce influência sobre eles independentemente de qualquer ideia de obrigação e qualquer consideração de utilidade pública ou privada. Desta natureza são o amor pelas crianças, a gratidão para com os benfeitores e a piedade pelos infelizes. Ao reflectirmos sobre as vantagens de que a sociedade se beneficia graças a tais instintos humanos, prestamos-lhes o justo tributo da aprovação e da estima moral, mas a pessoa que por eles é guiada sente o seu poder e influência anteriormente a qualquer reflexão deste gênero. A segunda espécie de deveres morais é a dos que não assentam em qualquer instinto original da natureza, derivando inteiramente de um sentido de obrigação, quando consideramos as necessidades da sociedade humana e a impossibilidade de a preservar se esses deveres forem descurados. É assim que a justiça, o respeito pela propriedade alheia, e a lealdade, o cumprimento das promessas, se tornam obrigatórias e ganham autoridade sobre os homens. Porque, sendo evidente que todo o homem se ama mais a si do que a qualquer outra pessoa, ele é naturalmente levado a ampliar o mais possível as suas aquisições; e esta sua propensão só pode ser limitada pela reflexão e pela experiência, graças às quais fica a conhecer os efeitos perniciosos desse excesso de liberdade e a total dissolução da sociedade que dela forçosamente decorrerá. Portanto, as suas tendências ou instintos originais são aqui restringidos e limitados por um juízo ou observação posterior. Com o dever político ou civil de fidelidade acontece precisamente o mesmo que com os deveres naturais de justiça e lealdade. Os nossos instintos primitivos conduzem-nos, ou a conceder a nós mesmos uma liberdade ilimitada, ou a procurar o domínio sobre os outros, e só a reflexão nos leva a sacrificar essas fortes paixões aos interesses da paz e da ordem pública. Basta um pequeno grau de experiência e de observação para mostrar que é impossível preservar a sociedade sem a autoridade dos magistrados, e que esta autoridade depressa passaria a ser desrespeitada se não se fizesse obedecer da maneira mais rigorosa. A observação destes interesses gerais e evidentes é a fonte de toda sujeição e de toda a obrigação moral que a ela atribuímos.

Qual é pois a necessidade de fazer assentar o dever de fidelidade ou obediência aos magistrados no de lealdade ou cumprimento das promessas, e de supor que é o consentimento de cada indivíduo que o submete ao governo, quando vemos que a fidelidade e a lealdade assentam ambas exatamente no mesmo fundamento, e são ambas aceites pelos homens devido aos evidentes interesses e necessidades da sociedade humana? Diz-se que somos obrigados a obedecer ao nosso soberano porque lhe fizemos uma promessa tácita nesse sentido; mas por que somos obrigados a cumprir a nossa promessa? Devemos aqui afirmar que o comércio e as relações entre os homens, que tão grandes vantagens oferecem, não possuirão segurança alguma se os homens não respeitarem os seus compromissos. De modo semelhante se pode dizer que seria totalmente impossível viver em sociedade, ou pelo menos numa sociedade civilizada, sem leis, magistrados e juízes para impedir os abusos dos fortes contra os fracos, dos violentos contra os justos e equitativos. Como a obrigação de fidelidade tem a mesma força e autoridade que a obrigação de lealdade, nada ganhamos em reduzir uma à outra; para fundamentar ambas bastam os interesses e necessidades gerais da sociedade.

Se se perguntar qual a razão dessa obediência que somos obrigados a prestar ao governo, prontamente responderei que é porque de outro modo a sociedade não poderia subsistir. E esta resposta é clara e inteligível para todo e qualquer homem. Vossa resposta é: porque devemos cumprir a palavra dada. Mas, além de ninguém, antes de ser instruído num sistema filosófico, ser capaz de compreender ou apreciar esta resposta, além disso, digo eu, vós mesmos ficais embaraçados quando se pergunta por que somos obrigados a cumprir a palavra dada. E não se pode dar outra resposta a não ser aquela que, imediatamente e sem qualquer desvio, explica a nossa obrigação de fidelidade.

Mas a quem é devida a fidelidade? Quem é o nosso soberano legítimo? Este problema é geralmente o mais difícil de todos, e pode dar origem a infindáveis discussões. Quando se tem a felicidade de poder responder: O nosso soberano actual, que herdou em linha directa de antepassados que nos governaram durante muitas gerações, esta resposta não admite réplica; mesmo que os historiadores, investigando até à mais remota antiguidade a origem dessa família real, descubram, como frequentemente acontece, que a sua autoridade teve inicialmente origem na usurpação e na violência. Todos reconhecem que a justiça privada, o respeito pela propriedade alheia, é uma virtude extremamente importante; contudo, a razão diz-nos que não há propriedade de objectos duradouros, como terras ou casas, quando cuidadosamente investigada a sua passagem de mão em mão, que não deva em algum momento ter-se baseado na fraude e na injustiça. As necessidades da sociedade humana, tanto na vida privada como na pública, não permitirão uma investigação tão rigorosa; e não há virtude ou dever moral algum que não possa facilmente ser rejeitado, se permitirmos que uma falsa filosofia a analise e inspeccione, mediante toda e qualquer regra capciosa da lógica, sob todo e qualquer aspecto ou posição em que possa ser colocado. […]
Na história dos imperadores encontram-se numerosos exemplos de natureza semelhante, como na dos sucessores de Alexandre e na de muitos outros países. E nada pode ser mais lamentável que um governo despótico deste tipo, em que a sucessão é desarticulada e irregular, tendo de ser resolvida, de cada vez que o trono fica vago, pela força ou por eleições. Num governo livre isso é muitas vezes inevitável, sendo também muito menos perigoso. Os interesses da liberdade podem frequentemente levar o povo, em sua própria defesa, a modificar a sucessão da coroa. E a constituição, por ser composta de partes, pode continuar a manter uma estabilidade suficiente apoiando-se nos membros aristocráticos ou democráticos, embora de vez em quando o membro monárquico seja mudado, a fim de ser ajustado aos primeiros.
Num governo absoluto, nos casos em que não haja um príncipe legítimo que possua direito ao trono, este pode com segurança ser considerado pertencente ao primeiro ocupante. Os exemplos deste género são até demasiado frequentes, sobretudo nas monarquias orientais. Quando uma linhagem de príncipes se extingue, o testamento ou as disposições do último soberano devem ser considerados como um título. Assim o édito de Luís XIV, que considerava sucessores os príncipes bastardos, no caso de faltarem todos os príncipes legítimos, teria nesse caso uma certa autoridade. Do mesmo modo, foi o testamento de Carlos II que decidiu o destino de toda a monarquia espanhola. A cessão do antigo proprietário, sobretudo quando se vem juntar à conquista, é de maneira semelhante considerada um título válido. A obrigação geral que nos vincula ao governo depende do interesse e das necessidades da sociedade; e esta obrigação é muito forte. A sua atribuição a este ou aquele príncipe ou forma de governo em particular é frequentemente mais incerta e duvidosa. A posse actual tem considerável autoridade nestes casos, e mais do que na propriedade privada, devido às desordens que acompanham todas as revoluções e mudanças de governo.
Antes de acabar, assinalaremos apenas que, embora invocar a opinião geral possa com justiça, nas ciências especulativas como a metafísica, a filosofia natural ou a astronomia, ser considerado injusto e inconsequente, mesmo assim, em todos os problemas relacionados com a moral, assim como com a crítica, não há efectivamente qualquer outro padrão que possa resolver qualquer controvérsia. E nada prova mais claramente que uma teoria deste tipo é errónea do que o facto de ela conduzir a paradoxos que repugnam aos sentimentos mais comuns dos homens e aos usos e opiniões de todas as nações e de todas as épocas. A doutrina que assenta qualquer governo legítimo num contrato original, ou no consentimento do povo, pertence a este tipo; e o mais conhecido dos seus partidários, em sua defesa, não hesitou em afirmar que a monarquia absoluta é incompatível com a sociedade civil, e portanto de modo algum pode ser uma forma de governo civil, e que o poder supremo de um estado não pode tirar a homem algum, por meio de impostos ou tributos, parte alguma da sua propriedade, sem o seu próprio consentimento ou o dos seus representantes. É fácil averiguar que autoridade pode ter qualquer argumentação moral que conduza a opiniões tão afastadas dos usos mais habituais entre os homens, em toda a parte menos neste reino.
O único texto da antiguidade que encontrei, onde a obrigação de obediência ao governo é atribuída a uma promessa, está no Críton de Platão, no trecho em que Sócrates recusa fugir da prisão, por ter tacitamente prometido obedecer às leis. […]
Não é de esperar que surjam novas descobertas nestes domínios. Se, até uma época bem avançada, raros foram os homens que pensaram que o governo assenta num pacto, é coisa certa que ele, em geral, não pode ter tal fundamento.
David Hume
Tradução de João Paulo Monteiro, Sara Albieri e Pedro Galvão
Originalmente publicado em 1748. Retirado de Ensaios Morais, Políticos e Literáriosde David Hume (Lisboa: INCM, 2002, pp. 440–416)

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