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sábado, 5 de novembro de 2016

Música e filosofia

Theodore Gracyk e Andrew Kania
Tradução de Vítor Guerreiro - Crítica na rede

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A música tem sido objeto de investigação filosófica desde o início da filosofia. Ao ler a República de Platão pela primeira vez, os estudantes não raro se surpreendem ao ver que o autor dedica considerável espaço à influência da música no caráter pessoal e na harmonia social. Para Platão e os seus contemporâneos, uma explicação da música era relevante para questões de metafísica e epistemologia, e a filosofia da música estava ligada à filosofia moral e política, e assim, por sua vez, a questões básicas de psicologia. A especulação grega antiga acerca da música encorajou também dois miléênios de exploração da relação entre a música e a matemática e, talvez surpreendentemente, entre a cosmologia e a astronomia. A filosofia da música foi um tópico de interesse para a maioria dos filósofos do período “moderno”, entre a revolução científica e o início do século XX. Não é um exagero afirmar que a filosofia da música foi central para as discussões estéticas oitocentistas.

O presente volume mostra que este ramo da estética não é uma relíquia histórica. Nas últimas décadas, tem havido um crescimento exponencial na filosofia da música. Nas palavras memoráveis de Stephen Davies em 2003: “Se fossem atribuídas medalhas pelo desenvolvimento em estética nos últimos trinta anos, a filosofia da música receberia a medalha de ouro.” Parte desta tendência surge do fato de muitos dos principais estetas, como o próprio Davies, Peter Kivy e Jerrold Levinson, se terem interessado principalmente pela música. Outra razão está no alargamento dos interesses de quem escreve filosoficamente acerca de música. Além das questões tradicionais de estética musical há um interesse crescente em áreas insuficientemente exploradas, como a música “impura” — a canção e a música cinematográfica, por exemplo — e tradições musicais além da música clássica ocidental — o rock, o jazz, o gamelão balinês, etc.

Mais recentemente ainda, tem havido um regresso cada vez maior à interdisciplinaridade histórica da área. Por um lado, os musicólogos têm-se envolvido mais nas abordagens filosóficas da música, como é visível nas discussões que fazem de livros escritos por filósofos e nos planos recentes para se realizar um colóquio conjunto com a American Society for Aesthetics e a Society for Music Theory. Por outro lado, os filósofos da música apoiam-se cada vez mais no trabalho realizado noutras áreas, como a psicologia e a ciência cognitiva, para esclarecer questões filosóficas tradicionais, como a da expressividade emocional da música.

The Routledge Companion to Philosophy and Music oferece uma sinopse atualizada desta área complexa, acessível a qualquer pessoa que se interesse pelo estudo filosófico da música. Procuramos adotar um estilo não técnico, acessível a leitores de diversos níveis — de estudantes de licenciatura, a alunos de pós-graduação e docentes — e transdisciplinar — de filósofos a musicólogos, e profissionais de áreas relacionadas, como a ciência cognitiva. Esperamos, portanto, que o volume não só reflita mas também ajude a estimular as ligações crescentes entre a filosofia da música e estas disciplinas relacionadas.

Assim, levamos muito a sério o “e” no nosso título, devido à necessidade de fundamentar a estética musical num conhecimento exaustivo da música e ao interesse dos musicólogos e outros acadêmicos por questões de estética. Há três maneiras pelas quais isso é visível nos conteúdos deste volume. Primeiro, há diversos capítulos sobre tópicos que poderíamos supor que são sobretudo musicológicos — a natureza da harmonia, melodia e do ritmo, por exemplo, ou o capítulo sobre o pensamento de Wagner. Segundo, há diversos capítulos sobre as várias subdisciplinas da música — teoria, análise, composição, etc. Terceiro, diversos capítulos couberam a especialistas de outras disciplinas que não a filosofia. Esperamos que estes ensaios tornem os filósofos mais cientes do trabalho relevante para os seus interesses realizado noutras áreas, e que encorajem a exploração complementar e o diálogo que atravessa fronteiras disciplinares. Reconhecemos que a nossa seleção de tópicos reflete um certo grau de subjetividade e de preferência pessoal, mas o objectivo foi dar ao mesmo tempo uma noção daquilo que até ao presente se alcançou nesta área e do caminho produtivo que nos parece estar perante nós.

O volume divide-se em seis partes. As primeiras duas contêm ensaios sobre questões filosóficas gerais suscitadas pela música, desde a natureza da própria música e de diversos aspectos desta (por exemplo, melodias, obras musicais, notações), passando pela prática musical (por exemplo, interpretação autêntica, apropriação, tecnologia), até à experiência que temos da música (por exemplo, compreensão, beleza, valor). Com excepção de alguns, poucos, tópicos “avançados”, os ensaios na Parte I tratam dos principais tópicos que por norma seria de esperar encontrar em qualquer abordagem geral à filosofia da música. A relação entre a música e a emoção, embora seja uma questão geral, tem um interesse e um âmbito tais que sentimos merecia que se lhe dedicasse uma parte própria.

As partes III e IV formam também um par relacionado, examinando a história do pensamento filosófico acerca da música. A Parte III dá-nos ensaios que abrangem cinco períodos fundamentais do pensamento filosófico acerca da música. Estes ensaios examinam movimentos históricos e escolas, esboçando a relação entre a estética musical durante esses períodos e outros desenvolvimentos na filosofia, na música, e na história. Dada a dimensão da tarefa, não procuramos abranger a história da filosofia da música na sua totalidade. Ao invés, destacamos períodos amplos de especial importância — o pensamento pré-moderno na Ásia, Europa e no Médio Oriente, e os primórdios do período moderno na Europa — e duas abordagens filosóficas centrais para o trabalho contemporâneo — as escolas continental e anglo-americana (ou “analítica”). Decidimos complementar as análises históricas com explorações detidas de figuras centrais na filosofia da música, como Platão, Nietzsche, e Adorno. Alguns dos outros ensaios contêm também uma razoável quantidade de história suplementar, sob uma perspectiva particular (por exemplo, musicologia, teoria musical e filosofia).

A Parte V abrange diferentes gêneros musicais. O alvo tradicional da maior parte da filosofia da música tem sido a música “absoluta” ou “pura” — música de concerto sem acompanhamento de texto ou programa. Mas ultimamente tem havido bastante interesse na música “impura”, motivado em parte pelo reconhecimento de que este pode ser o gênero de música de que mais comummente se tem experiência. Pelo que esta parte inclui ensaios sobre a canção, a música cinematográfica, a música de dança, etc., além de diferentes tradições musicais, como o rock e o jazz. Conjuntamente, estes ensaios sugerem que diferentes gêneros musicais põem em destaque questões filosóficas distintas, e que a filosofia da música, portanto, não tem de convergir num conjunto limitado de problemas filosóficos. Além disso, a escolha de refletir sobre a música além do “cânone” ocidental da arte musical é cada vez mais importante para o pensamento não filosófico acerca da música, como se vê nos ensaios sobre sociologia e estudos culturais e sobre a fenomenologia da música.

Finalmente, a Parte VI contém ensaios sobre as relações entre a filosofia da música e muitas das outras disciplinas que informam essa filosofia. Estas incluem muitas das subdisciplinas da investigação musical, como a teoria, a análise, e a composição, e também outros tópicos como a política, sexo e psicologia. Além de darem ao livro um âmbito mais vasto que a filosofia, os tópicos nesta parte refletem o objectivo de criar um compêndio amplamente inclusivo que vá além das preocupações da escola anglo-americana que domina a filosofia contemporânea da música.

Em suma, The Routledge Companion to Philosophy and Music constitui uma visão panorâmica atualizada de mais de quarenta e oito tópicos distintos, relevantes para a filosofia da música. Tanto quanto sabemos é a primeira obra de referência dedicada exclusivamente ao estudo filosófico da música. Muitos ensaios são contribuições de acadêmicos destacados que fizeram já avançar a área de que aqui oferecem uma perspectiva geral; outros são de jovens investigadores particularmente competentes. Esperamos que estes ensaios informem e estimulem igualmente os estudantes e os profissionais acadêmicos. Mas, sobretudo, esperamos que a sua combinação num único volume encoraje novas ideias acerca da música.

Theodore Gracyk e Andrew Kania

Retirado de The Routledge Companion to Philosophy and Music (Londres: Routledge, 2011)

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