A grande inovação dentre as regras vigentes é a possibilidade de que o Tesouro Nacional, sempre ele, possa ser autorizado a aportar recursos nas instituições financeiras quando estas se encontrarem em crise de total liquidez.
A grande questão que vem à tona é que essa medida, além de ferir o art. 167, Capítulo VIII, da Constituição Federal, entra em desacordo com o Artigo 28 e seus parágrafos da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF) que veda essa modalidade operação ao tratar, em seu Capítulo VI, da destinação de recursos públicos para o setor privado.
Dita a supracitada disposição complementar que:
Art. 28. Salvo mediante lei específica, não poderão ser utilizados recursos públicos, inclusive de operações de crédito, para socorrer instituições do Sistema Financeiro Nacional, ainda que mediante a concessão de empréstimos de recuperação ou financiamentos para mudança de controle acionário.
1o A prevenção de insolvência e outros riscos ficará a cargo de fundos, e outros mecanismos, constituídos pelas instituições do Sistema Financeiro Nacional, na forma da lei.
2o O disposto no caput não proíbe o Banco Central do Brasil de conceder às instituições financeiras operações de redesconto e de empréstimos de prazo inferior a trezentos e sessenta dias.
Essa iniciativa do governo, na verdade, se espelha em um modelo que foi adotado nos Estados Unidos por ocasião da grande crise financeira de 2008, fato este bem retratado no filme “Grande demais para quebrar” do cineasta Curtis Hanson.
Naquela época, devido à grande probabilidade do alastramento da crise financeira gerada pelas operações com derivativos, foram realizadas gestões por parte das autoridades monetárias norte-americanas sob a liderança de Hank Paulson e Ben Bernanke, respectivamente Secretário do Tesouro e Presidente do Federal Reserve, para que o Congresso autorizasse ao governo aportar dinheiro público no Lehman Brothers e outras instituições de peso para se evitar um processo falimentar. Com isso, buscava-se neutralizar uma possível “quebradeira geral” que teria grandes repercussões na economia local e, por extensão nas grandes economias mundiais.
Ressalte-se que as gestões para autorização de aporte de recursos por parte do Tesouro ocorreram para solucionar uma situação crítica gerada pela ausência de medidas regulatórias para o Mercado Financeiro norte-americano, muito embora o Acordo da Basileia fizesse previsão para a adoção desses mecanismos desde o início dos anos 1990 por parte dos países signatários, entre os quais os Estados Unidos e o Brasil.
Em consonância com as diretrizes estabelecidas pelo Acordo da Basiléia, o Brasil, entre 1995 e 1996, deu os primeiros passos regulatórios com a implantação do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional – PROER, cujos instrumentos vieram sendo gradativamente aperfeiçoados por outros dispositivos legais.
O PROER teve por finalidade a recuperação das instituições financeiras que estavam com graves problemas de caixa, o que poderia gerar uma crise econômica sistêmica, constituindo-se em um marco importante para que, a partir de ajustes e introdução de instrumentos regulatórios no Sistema Financeiro Nacional, a Economia Brasileira pudesse sair de uma situação hiperinflacionária para uma situação de estabilidade monetária permitindo a própria sustentabilidade do Plano Real implantado em julho de 1994. Outra importância atribuída ao PROER é que, por força dos instrumentos regulatórios implantados, fez com que o sistema bancário brasileiro se saísse relativamente bem defronte ao colapso financeiro mundial como consequência da crise econômica de 2008.
Os defensores da medida que autoriza o Tesouro Nacional a aportar recursos nas instituições financeiras em crise de liquidez alegam que isto somente aconteceria depois de esgotadas todas as medidas necessárias para saneamento da instituição problemática, entre as quais a utilização de recursos dos seus acionistas para a sua recapitalização e com o aval de um conselho gestor devidamente credenciado para essa missão. Segundo alegam, ainda, os defensores da medida, o aporte do Tesouro garantiria o “bom funcionamento da economia real” evitando assim crises sistêmicas conforme a que ocorreu em 2008.
O modelo regulatório brasileiro serve de referência para muitos países sendo uma das suas grandes inovações a criação do Fundo Garantidor de Crédito – FGC, fundo este caracterizado como uma associação civil privada criada em conformidade com os Artigos de 53 a 61 do Código Civil, cujos cotistas e participantes, regidos por um estatuto próprio, são as próprias instituições financeiras que são supervisionadas pelo Banco Central.
O FGC tem como finalidade básica fornecer, até um limite estabelecido normativamente, garantia e proteção aos correntistas e aplicadores de recursos nos bancos quanto a eventuais situações de crise bancária sistêmica, o que contribui para a manutenção da estabilidade de todo o sistema financeiro e onde o Banco Central e o FGC exercem papéis complementares. Essa complementaridade de papéis, fugindo ao subjetivismo, é regida por legislação, inclusive com previsão na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) mencionada no início deste artigo.
Acrescenta-se a esse processo a figura do mercado interbancário, também denominado de mercado monetário, que é comum a todos os países e onde as instituições financeiras realizam entre si operações de financiamento à vista ou de curto prazo, visando a manutenção da liquidez nos casos em que haja prejuízo das respectivas reservas monetárias. Ou seja, uma instituição que esteja com as suas reservas superavitárias pode financiar outra instituição que esteja deficitária, mediante a cobrança de juros. Esse mecanismo impede que uma instituição em dificuldade financeira momentânea recorra ao Banco Central para realizar uma operação de redesconto, o que não é desejável em termos institucionais e financeiros.
Por fim, e como ocorre em todos os países, o Banco Central dispõe de vários instrumentos previstos em lei que respaldam a sua atuação enquanto autoridade monetária, permitindo que atue separadamente ou simultaneamente de forma preventiva, repressiva e saneadora, tomando medidas que, no conjunto, buscam promover o controle dos riscos e manter a disciplina de mercado, assegurando a solidez do sistema financeiro e das instituições que o integram
Por tudo o que foi exposto de forma um tanto resumida, não se justifica abrir uma possibilidade de atuação do Tesouro Nacional no auxílio às instituições financeiras em dificuldades através do aporte de recursos, ferindo as disposições da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
O sistema bancário brasileiro é altamente regulado, reconhecidamente saudável e forte, muito embora tenha um elevado custo para o seu usuário e acentuada concentração de operações em poucas instituições, concentração esta que exige ser mais bem trabalhada para se alinhar às grandes economias mundiais. Nesse bojo, o fortalecimento do mercado de capitais é uma das medidas prementes em razão da sua ainda pouca utilização por parte das empresas brasileiras. Mas isto é assunto para outro artigo.
Assim, chamar todos os contribuintes brasileiros para contornar fatos criados por uma eventual má gestão financeira ou administrativa configura-se como uma forma de protecionismo e de concentração de renda inaceitáveis para os parâmetros contemporâneos.
José Luiz Miranda é economista e foi conselheiro do Corecon-GO.
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