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quarta-feira, 13 de junho de 2018

Alguns poupam muito, mas mal, no Brasil

José Roberto Afonso
Economista, pesquisador do FGV IBRE
e professor do IDP

Thiago Felipe R. Abreu
Doutorando da Uerj


O Brasil investe pouco e poupa menos ainda. É fato sabido. A poupança nacional bruta decresceu significativamente nos últimos anos e caiu para nível tão baixo quanto o verificado na década de 90. 

Em 2016, a taxa de poupança global caiu para 13,9% do PIB. Quase metade da taxa média mundial, de 24,5% do PIB, segundo o Banco Mundial,1  que também relaciona 137 países e o Brasil despenca para a 111a posição. Muito mais atrás se comparado a outras economias emergentes, como China e Rússia (49% e 23% do PIB), abaixo até da média dos países da América Latina (17%).

Se o Brasil poupa muito pouco, surpreende que o mesmo não vale para os brasileiros (famílias). Na verdade, o que derruba a taxa nacional são os outros setores da economia – em particular, o governo com despoupança. 

As famílias poupam 6,8% do PIB (2014), taxa que se alterou sensivelmente depois da última revisão das Contas Nacionais.2 Um indicador mais representativo é comparar a poupança com a renda disponível das famílias: aquela mudança metodológica elevou em mais de 40% o índice – em 2009, quando se mediu pelos dois métodos, se verificou um salto de 6,5% para 9,2%. 

A comparação internacional é que dá uma melhor dimensão da incrível mudança ocorrida na contabilidade nacional e do que significa a nova dimensão da poupança familiar. Ao contrastar com os dados da OCDE,3 se verifica que o Brasil se destaca em quinto lugar entre as famílias que mais poupam entre as economias mais ricas do planeta – com 8,8% da sua renda poupada, ficamos atrás apenas da China (37,9%), Suíça (20,1%), Suécia (15,9%) e Alemanha (9,4%), ao lado do Chile (8,9%) – ver gráfico.

Todos os países devem adotar a mesma metodologia, definida pelas Nações Unidas (Manual Internacional SNA) e apuram a poupança das famílias por resíduo – isto é, o saldo entre a renda disponível e o consumo final. Se o método não mudou, a grande mudança recente no cálculo da poupança das famílias brasileiras, segundo técnicos do IBGE, foi nas fontes primárias de estatísticas levantadas para dimensionar a renda dos indivíduos. Se passou a tabular também dados extraídos das declarações do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), o que aumentou razoavelmente o montante dos dividendos recebidos pelas famílias em relação à base de dados anterior. Nas novas Contas Nacionais, aumentou proporcionalmente muito mais a renda do que o consumo doméstico e, consequentemente, disparou a taxa de poupança familiar, passando a superar a de muitos países ricos. 

Essa melhoria na captura de informações pelo IBGE sobre as famílias coincidiu também com mudança na economia e na sociedade, de modo que parcela crescente delas passa a perceber rendas provenientes de trabalho que não decorrem de salários, mas sim dos lucros sacados das firmas, que passaram a abrir para prestar serviços no lugar de serem contratadas como carteira assinada. A evolução e a dimensão dos rendimentos isentos (que incluem tais retiradas) declarados ao fisco evidenciam tal tese (Afonso, 2014).4 Isto sem falar que os ganhos financeiros tendem a ser mais expressivos que no resto do mundo pela continuidade e dimensão da taxa de juros reais positiva paga no país. 

A questão é se faria sentido esperar que a propensão a poupar desse (novo) capitalista (trabalhador contratado como firma individual) seja maior do que de um empregado assalariado? 

A hipótese forte é que a atual e maior dimensão relativa da poupança doméstica no Brasil do que em outros países seria mais uma faceta da brutal concentração de renda, que tradicionalmente marca o país. Os próprios dados mais recentes do IRPF atestam que as faixas de maior rendimento concentram a renda e a riqueza declarada, e que tanto maior a renda menor o peso relativo daquelas de origem tributável (como os salários). Mas tal fonte de declarações fiscais não trata de como as rendas são gastas. 

A fonte estatística mais indicada seria a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), porém, esta padece de problemas como não atualização (a última é de 2009) e subdeclaração – em particular, é de se esperar que lucros e ganhos de capital sejam mal reportados na pesquisa. É difícil avaliar em separado do perfil de consumo dos recebedores de dividendos para abatê-lo de sua renda e chegar à sua poupança. 

Recorrendo às últimas POFs, o Banco Central5 apurou a taxa de poupança familiar com corte regional e confirmou a esperada concentração. No agregado, apurou uma poupança abaixo da nova medida das Contas Nacionais, mas mantendo viés de baixa: de 6,1% da renda disponível em 2003 caiu para 5,5% em 2009. Também diminuiu de 44% para 42% o número de famílias que pouparam, respectivamente. E, o principal, a taxa estaria clara e fortemente correlacionada com a renda, destacando que famílias com renda superior a seis salários mínimos pouparam 10,7% do que ganharam enquanto as de renda até meio salário, pouparam apenas 3,9%. Quando publicada a POF de 2017/2018 que está em campo, talvez seja possível uma atualização. 

A questão da mensuração da desigualdade explorando fontes e considerando aspectos tributários só ganhou atenção recente no Brasil.6  Entre outros, Medeiros et al. (2015)7  mostram que a desigualdade de renda permaneceu estável entre 2006 e 2012, onde por mais que houvesse no período crescimento de renda, os mais ricos se apropriaram da maior parte desse crescimento. Castro (2004)8 apurou, tabulando as declarações de IRPF, uma concentração em bens muito maior na renda gerada (que já era muito alta). Perugini et al. (2015)9  e Coibion et al. (2017)10  mostram que o preço do crédito não só é maior, como o acesso ao crédito também é mais difícil, tornando o endividamento maior em regiões de maior desigualdade. 

Se a concentração da renda e riqueza são determinantes-chave para a maior taxa de poupança doméstica, por outro lado, também podem explicar a sua baixa disseminação e (o mais grave) a despreocupação com o futuro. 

A má alocação de recursos já era indicada pelo BCB ao examinar os dados da POF de 2009 e identificar que uma taxa de 5,5% da renda poupada era o resultado da soma das fontes: de aquisições, prestações e reformas de imóveis 3,5%; de empréstimos e carnês 1,4%; e somente 0,7% de aplicações financeiras. 

Uma pesquisa de opinião popular especificamente voltada para medir a formação de poupança como meio de gerar renda na velhice coloca o Brasil na lanterna entre os países pesquisados pelo Banco Mundial (2016).11  Entre os brasileiros que estão entre os 40% mais pobres, irrisórios 2,1% poupam para velhice (na maioria dos emergentes, essa proporção é três a cinco vezes maior). Mais surpreendente, porém, é que ao contar os 60% mais ricos do país, apenas 4,7% poupam para o mesmo fim (taxa que dobra ou triplica nos emergentes semelhantes).

A baixa proporção de brasileiros poupando é confirmada por outras fontes locais. A partir dos dados da Pnad, por exemplo, é possível computar que a previdência privada possuía uma irrisória penetração no ano de 2014, apenas 2,4% da população economicamente ativa, ou seja, 4,2 milhões de pessoas declararam ter planos desse regime.

Uma razão para tanta distância no Brasil tende a ser a cobertura e o acesso ao pagamento de benefícios pelo regime geral de previdência social universal, fora a renda mínima para idosos e carentes. Cabe apontar que a cobertura do INSS tende a ser considerada grande e significativa à luz da renda média brasileira, que é muito baixa.
  
O pior é que se poucas famílias poupam, tendem a alocar de forma que pouco irradia na economia. Isto porque a maior parte do que se poupa é usada para o financiamento do governo. Sua despoupança, em 2014, era -2,8% do PIB. Deve ter subido mais nos anos recentes. 

O país carece de políticas públicas que criem um ambiente propício à poupança doméstica de longo prazo. O governo deveria contribuir reduzindo a despoupança e a dívida pública. Enquanto não consegue, ao menos poderia adotar regras tributárias que estimulassem a previdência privada, inclusive voltada ao crescente trabalho independente – em linha com o que se discute na Europa.13  Este é o caminho mais eficiente para aumentar e alongar a poupança nacional, desenvolver mercados de capitais e financeiros e viabilizar uma taxa de investimento compatível com as necessidades de crescimento de uma economia emergente.

Enfim, o IBGE não apenas passou a identificar rendas antes desconhecidas, como também elas vêm crescendo mais do que as demais rendas e, ainda, quem a recebe acaba usando proporcionalmente menos para consumo. Desta forma, a taxa agregada das famílias é relativamente alta no Brasil, sobretudo comparada com outros países. Mas a proporção de brasileiros que poupam para a velhice é irrisória em pesquisas internacionais. 

Se uma concentração da poupança e da riqueza ainda mais acentuada do que a da renda pode ser a principal razão para essa surpreendente desproporção, distorção muito maior para a macroeconomia resulta da alocação dada à poupança doméstica – concentrada no curto prazo e no financiamento ao governo. Isso torna diminuta a poupança previdenciária, aquela voltada para o longo prazo e que permitiria financiar e alavancar projetos de investimentos e, por conseguinte, a economia. 

O paradoxo da poupança no Brasil é enorme. Ainda que poucos poupem muito, a imensa maioria dos brasileiros nada ou nunca poupa para velhice. Quando se poupa, se faz de forma improdutiva, em prazos curtos e concentrado em financiar o governo, o que não impulsiona o desenvolvimento (até porque o déficit público não decorre de investimentos públicos elevados, muito pelo contrário).  

 Clique aqui para ler o artigo completo.

1 Base de dados do Banco Mundial disponível em: https://bit.ly/2rN4z5B. 2 IBGE divulgou notas metodológicas, como a geral em: https://goo.gl/PRH0Nx. Estatísticas disponíveis em: https://bit.ly/2IvrrwB. 3 OCDE divulga dados das poupanças domésticas em https://bit.ly/1P6ceB0. 4 Ver nosso artigo “Imposto de renda e distribuição de renda e riqueza: as estatísticas fiscais e um debate premente no Brasil” na primeira edição da Revista da Receita Federal, em dezembro de 2014. Disponível em: https:// goo.gl/sfJ3Wv. 5 Nota do BCB, “Taxa de poupança familiar: uma análise regional. Boletim Regional do Banco Central do Brasil, de janeiro de 2013”, disponível em: http://bit.ly/1hJ9pbI. 6 Destaque para livro Tributação e desigualdade, de Lukic, Afonso, Orair e Silveria, editado pela FGV Direito Rio – ver: https://goo.gl/45Z2VE. 7 Medeiros, M.; Souza, P.; Castro. F. “O topo da distribuição de renda no Brasil: primeiras estimativas com dados tributários e comparação com pesquisas domiciliares, 2006-2012 (“Top incomes in Brazil: first estimates with tax data and comparison with survey data, 2006-2012” (August 14, 2014). Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 58, n. 1, 2015. Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=2479685. 8 Castro, Fábio Avila de. Imposto de Renda de Pessoa Física: comparações internacionais, medidas de progressividade e redistribuição. Dissertação de mestrado – 35, 2014. Um roteiro ou experiência que poderia interessar seria o relatado por Fairfield e Jorratt. Universidade de Brasília, Departamento de Economia, Brasília, 2014. Disponível em: http://bit.ly/1FsZFYtDIEESE/. 9 Perugini, Cristiano; Hölscher, Jens; Collie, Simon. “Inequality, credit and financial crises”. Cambridge Journal of Economics, [s.l.], v. 40, n. 1, p. 227-257, 5 jan. 2015. Oxford University Press (OUP). http://dx.doi.org/10.1093/cje/ beu075. 10Coibion, Olivier, et al. “Does greater inequality lead to more household borrowing? New evidence from household data”. N. w19850. National Bureau of Economic Research, 2014. 11Banco Mundial. Saving for Old Age (2016). Disponível em: https://data.worldbank.org/ https://bit.ly/2IYvLFm. 12Mais detalhes, ver “Estudo técnico para subsidiar a formulação de um plano de fomento do regime fechado de previdência complementar no Brasil”, publicado pela Abrapp, mar. 2017. Disponível em https://bit.ly/2B5fOfW. 13Ver recente plano detalhado em “Pensions Europe position paper on the Pan-European Personal Pension Product (PEPP)”, jan. 2018. Disponível em: https://bit.ly/2GBkCIc. 

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