O texto final da Lei 13.694/2019, publicado no dia 24 de dezembro de 2019, representou uma grave derrota para o ministro Sergio Moro. Embora tenha se manifestado no sentido de que as disposições legais aprovadas pelo Congresso e promulgadas pelo Presidente Jair Bolsonaro no âmbito do chamado “pacote anticrime” tenham representado uma “vitória”[1] de sua pasta, as suas principais sugestões de alteração legislativa — absurdas e inconstitucionais — foram, acertadamente, rechaçadas. Essa estratégia de mascarar a realidade é uma característica da gestão Moro.
A título exemplificativo, vale mencionar que a proposta de que a execução das penas privativas de liberdade fosse iniciada logo após o julgamento dos recursos de apelação foi abandonada, e, também, foi sensivelmente modificado o dispositivo que alargava o conceito de legítima defesa, conferindo aos agentes de segurança ampla possibilidade de matar, sem sofrer qualquer tipo de sanção criminal. Uma verdadeira licença para matar que atingiria sobretudo os negros e pobres da periferia.
Por outro lado, com o objetivo de aprimorar a dinâmica processual e garantir a imparcialidade dos juízes, foi criada a figura do juiz das garantias, “responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário” (artigo 3º). Certamente, a maior derrota do ministro da Justiça, que se notabilizou pela parcialidade enquanto juiz. Sua pretensão de ter uma vara de competência nacional jamais poderia aceitar os limites democráticos que pressupõe o juiz de garantias.
Destarte, a introdução da Lei 13.694/2019 no ordenamento jurídico trouxe importantes modificações no processo penal brasileiro. Todavia, embora os debates no Congresso Nacional tenham aprimorado a proposta legislativa originária, várias disposições aprovadas violam, de forma grave, o devido processo legal, a ampla defesa, a Constituição Federal.
O artigo 14 do diploma legal, que insere o artigo 3º-C, parágrafo 2º, na Lei 12.850/2013, e altera a disciplina aplicável aos acordos de colaboração premiada, é um dos dispositivos da novel legislação incompatíveis com o processo penal de cariz democrático. Tal dispositivo prevê que, no âmbito de negociações para a celebração de acordos de delação, “em caso de eventual conflito de interesses”, o órgão incumbido da persecução penal (Ministério Público ou Polícia Judiciária) “deverá solicitar a presença de outro advogado ou a participação de defensor público”.
A redação dada ao referido dispositivo legal, cumpre enfatizar, é cópia do artigo 10.1, da Orientação Conjunta 1/2018, expedida pelo Ministério Público Federal no dia 23 de maio de 2018, segundo o qual, “em caso de eventual conflito de interesses (…), o órgão do Ministério Público oficiante deverá solicitar a presença de outro advogado ou a participação de defensor público”.
O novo dispositivo legal, sem delinear qualquer critério objetivo, confere à Polícia Judiciária ou ao Ministério Público, na condição de “celebrantes” de acordo de colaboração premiada, o inaceitável poder de interferir na escolha do defensor técnico que representará o candidato a colaborador, requerendo a sua substituição, nas hipóteses em que julgar existir conflito de interesses; e não define o que seja conflito de interesses. Uma ofensa ao princípio da paridade de armas.
Nesse contexto, cumpre destacar que a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 678/1992, estabelece ser garantia judicial essencial que, “durante o processo, toda pessoa” tenha direito de “defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha”.
Ainda de acordo com o referido diploma internacional de consagração de direitos humanos fundamentais, é “direito irrenunciável” de qualquer investigado ou acusado “ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defende por ele próprio” e se não “nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei”.
Em suma, o Estado deve assegurar que os investigados e acusados exerçam a defesa técnica, mas não pode interferir na escolha do advogado, o que também é assegurado, de forma expressa, na Convenção Europeia de Direito Humanos: “3. O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos: (…) c. Defender-se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para remunerar um defensor, por ser assistido gratuitamente por um defensor oficioso”.
Ao examinar essa inafastável garantia processual, Barreto pontifica que “a condução da defesa pertence ao interessado e aos seus representantes”[2] e Arangüena Fanego aduz que observá-la é elementar para o efetivo respeito ao devido processo legal[3], para garantia a própria validade e a legitimação do processo penal. Afinal, a relação entre o defensor técnico e o seu assistido é embasada na mútua confiança e não deve ser influenciada pelos desígnios — às vezes, obscuros — dos agentes da persecução penal.
Bartole, Conforti e Raimondi[4], na mesma esteira, destacam a importância de que seja assegurada ao imputado ampla liberdade na escolha de seu defensor, para a efetiva realização dos postulados fundamentais do devido processo legal e da ampla defesa, conforme reiteradas vezes decidiu a Corte Europeia de Direitos Humanos. Scarance Fernandes, por sua vez, sublinha a importância de se “assegurar ao acusado, como derivação do direito à defesa técnica, a possibilidade de escolher defensor, porque a relação que se deve estabelecer entre os dois é de recíproca confiança”[5].
Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, importância dessa essencial garantia já foi reiteradas vezes reconhecida. Colhe-se de decisão exarada pelo ministro Celso de Mello que “o réu tem o direito de escolher o seu próprio defensor. Essa liberdade de escolha traduz, no plano da persecutio criminis, específica projeção do postulado da amplitude de defesa proclamado pela Constituição” (RTJ 142/477).
É amplamente reconhecida, portanto, a necessidade de que os acusados escolham, de forma livre, os seus advogados, sem qualquer tipo de interferência estatal. Não obstante, o novo artigo 3º-C, parágrafo 2º, da Lei 12.850/2013, sem a definição clara do que signifique conflito de interesses, outorga aos agentes incumbidos da persecução penal a prerrogativa de solicitar a substituição do defensor técnico escolhido pelo colaborador.
O universo de hipóteses nas quais a aplicação do referido dispositivo legal trará violações graves aos direitos e garantias fundamentais dos investigados é vasto. Apenas para exemplificar, cabe indagar: algum candidato a colaborador assumirá o risco de manter nas negociações advogado que foi recusado pelo órgão “celebrante”, mesmo que entenda que seus direitos estão sendo devidamente tutelados? Como se resguardará a defesa técnica e a lealdade nas negociações para a celebração de acordo, se o candidato à colaboração decidir preservar o defensor rejeitado, contrariando o órgão “celebrante”?
Trata-se, pois, de previsão que viola, de forma evidente, os postulados fundamentais do devido processo legal e da ampla defesa, assegurados na Constituição Federal, em razão do que há de ser declarado inconstitucional. Ademais, dadas as revelações recentes de supostas relações espúrias entre autoridades públicas “celebrantes” de acordos de colaboração e advogados especialistas em conduzir negociações, é preciso reconhecer que a falta de clareza desse teratológico dispositivo legal poderá comprometer ainda mais a transparência das delações premiadas e a já questionável atuação de alguns dos agentes públicos que as conduzem e de alguns “advogados” que não honram a classe.
[1] https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/12/05/para-moro-aprovacao-de-pacote-anticrime-foi-vitoria-mas-congresso-poderia-ter-feito-mais.ghtml
[2] BARRETO, Irineu Cabral. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 170.
[3] ARANGÜENA FANEGO, Coral. Exigencias en relación con el derecho de defensa: el derecho a la autodefensa, a la defensa técnica y a la asistencia jurídica gratuita. In: GARCÍA ROCA, Javier; SANTOLAYA, Pablo. La Europa de los Derechos: el Convenio Europeo de Derechos Humanos. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2009, p. 431 e ss.
[4] BARTOLE, Sergio; CONFORTI, Benedetto; RAIMONDI, Guido. Commentario Alla Convenzione Europea Per la Tutela Dei Diritti Dell’Uomo e Delle Libertà Fondamentali. Milão: CEDAM, 2001, p. 226.
[5] FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 300.
Conrado Almeida Corrêa Gontijo é sócio do Corrêa Gontijo Sociedade de Advogados, doutorando e mestre pela USP, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela FGV e pela Universidad Castilla-la-Mancha.
Antônio Carlos de Almeida Castro – Kakay é advogado criminalista.
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